terça-feira, 20 de novembro de 2018

Há mortes e mortes

Nos últimos dias, dois acontecimentos trágicos envolvendo vítimas mortais foram notícia de abertura
nos telejornais, embora com abordagens e desenvolvimentos diferentes. O primeiro teve a ver com a morte duma família, três adultos e duas meninas de 9 e 14 anos, cinco vítimas de presumível intoxicação por monóxido de carbono, no concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real. O segundo, com duas vítimas já confirmadas, aconteceu no seguimento da estrada que ligava Borba a Vila Viçosa ter abatido, uma estrada que nos últimos anos vinha a ser "comida" pelo apetite das pedreiras que a ladeavam.
Numa perspetiva meramente consequencialista, o país deveria acompanhar com mais consternação e dor, o primeiro acontecimento, já que as consequências foram mais terríveis, atendendo ao número de vítimas e aos laços familiares que as uniam. No entanto, foi o acidente do distrito de Évora que se prolongou nos noticiários, com direito a debates e conferências de imprensa, mobilização de peritos e maquinaria e, obviamente, a visita meteórica do presidente Marcelo.
Há mortes e mortes e nós preferimos uma morte espetacular à morte discreta duma pobre família, habitando um casebre sem luz elétrica e sem janelas, que morreu respirando.
O caso da estrada das pedreiras que abateu ainda promete sangue, apuramento polémico de responsabilidades, o eterno passa culpa e relatórios e avisos que não foram tidos em conta e muita, muita discussão. Ora, uma morte demasiado discreta, na calada da noite, no recato duma casa, não satisfaz o nosso prazer mediático.
As mortes de Sabrosa refletem uma situação que preferimos esquecer rapidamente. A pobreza e a miséria em que muitos dos nossos concidadãos vivem, ou sobrevivem, são demasiado incómodas para a nossa boa consciência pré-natalícia.
Enquanto os corpos da pedreira, para a nossa gula, vão demorar a aparecer, aquela pobre família já foi a enterrar.
As oportunas pazadas de terra ajudar-nos-ão a recalcar o nosso mal-estar.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

De cara tapada

Retângulo desesperado
sem fronteiras para a dignidade adentro
honra perdida mares fora
pátria má amante, madrasta, putéfia,
mereces o meu ódio.

Foda-se Portugal,
fosses antes uma província do Irão
da minha ira
e andasses de cara tapada.

domingo, 2 de setembro de 2018

De marca ou genéricos?


Outro dia foi diagnosticado ao Gaudí uma infecção urinária. De imediato, o veterinário receitou-lhe um
O Gaudí e eu
antibiótico que fui levantar na farmácia. Aí, a farmacêutica perguntou-me se eu queria um genérico ou um antibiótico de marca. Não sei se refleti muito sobre a resposta. De facto, quase imediatamente respondi: «Dê-me um antibiótico de marca, porque é para o meu cão! Só levava o genérico se fosse para mim!».
Pensei várias vezes no que tinha feito e discuti o ocorrido com algumas pessoas que pareciam chocadas. Entendiam que devia ser ao contrário. Não me convenceram. Não se tratava de saber quem merecia o produto, eventualmente, melhor. Era outra coisa, que não sabi muito bem, na altura, como justificar. Nomeadamente, havia um argumento que me martelava na consciência: em tempos de dificuldades, uma sociedade em que as desigualdades continuam a aumentar e a pobreza se "mascara" de novas formas, parecia quase criminoso ou pelo menos insultuoso que eu comprasse um antibiótico de marca para o meu cão, enquanto não hesitaria em escolher um genérico para mim.
Ora, talvez tenha encontrado uma possibilidade de resposta em Kant e, mais concretamente, no filósofo australiano Peter Singer. É que a luta contra o especismo, a perspetiva discriminatória com que tratamos os seres de outras espécies animais como se estes existissem apenas em função dos seres humanos e para satisfação dos interesses destes, é também um desafio à nossa inclinação moral e, no limite, ao nosso altruísmo.
O que damos aos animais não humanos e não a animais humanos, os nossos semelhantes, exprime ao mais alto nível o nosso altruísmo moral. Isto é, quando me dou ou dou ao outro, este outro não é "apenas" a outra figura de mim, mas radicalmente o outro que não sou eu; será então nesse momento que dou expressão ao meu amor puro e desinteressado.
E, nesse sentido, é então que me coloco sob os auspícios da perspetiva ética mais rigorosa. Quando escolho o melhor para o meu cão, eu estou a entregar-me da forma mais gratuita, a que não espera nenhuma retribuição. O Gaudí não pode dizer que faria o mesmo. E eu não espero nada dele, que ele retribua. O que está em jogo é "apenas" o amor desinteressado pelo outro.
Podem sorrir desta minha atitude, como a farmacêutica naquela ocasião. Só lhes posso responder que o amor ao outro é mesmo uma coisa muito séria.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

De passagem

Diante da minha janela passa uma rua
o fim da rua que era
também o fim do mundo.
Era um mundo cheio de pressa
o mundo que passava diante
da minha janela.
Até que um dia passaste
nessa rua
atravessaste o mundo
que passava
quando passavas.
A rua ficou diferente
O mundo já não era o mesmo.
E os meus olhos até aí cegos
tiveram que aprender tudo
outra vez.
(Lisboa, agosto, 2009-2014)

domingo, 19 de agosto de 2018

O eterno retorno do fascismo segundo Rob Riemen


                Uma das minhas leituras de verão inclui um curto e oportuníssimo ensaio de Rob Riemen, um filósofo holandês nascido em 1961: O Eterno Retorno do Fascismo[1]. Riemen começa por enquadrar propedeuticamente a reflexão sobre este retorno reiterado do fascismo. Em primeiro lugar, a questão terminológica: a palavra «fascismo» é tabu na Europa e usam-se várias denominações para clarificar movimentos da direita e extrema-direita (conservadorismo radical, populismo de direita), mas nunca usa o termo «fascismo». Ora, alerta Riemen, se queremos combater eficazmente o fascismo, teremos de o chamar pelo seu nome, não deveremos temer o uso da palavra adequada: «fascismo»[2]. Por outro lado, há que ter em conta que o fascismo corresponde à politização de uma mentalidade que se começara a desenvolver no cenário europeu. É assim que regressa a alguns autores que logo no início do século XIX vão dando conta dessa atmosfera: Goethe, Tocqueville, Nietzsche e, mais tarde, Ortega Y Gasset. O que nos relatam esses autores é sublinhado por Riemen? Fundamentalmente, a perda dos valores espirituais que acarreta não só o desaparecimento da moral, como da cultura.
A Europa que, no século XX, estava no limiar duma sociedade livre, onde se respeitava a liberdade individual, se assumia a responsabilidade pessoal e se cultivavam os valores espirituais que apoiavam o ideal de civilização, acaba, segundo Ortega Y Gasset, por rejeitar esta oportunidade histórica em nome dum novo tipo de indivíduo: o homem da multidão, o homem-massa (pp. 21-22). A ascensão deste tipo de homem representa uma ameaça direta aos valores e ideais da democracia liberal e do humanismo europeu, "tradições em que o desenvolvimento espiritual e moral do indivíduo livre garante os fundamentos de uma sociedade livre e aberta" (p. 22). Ora, o caráter niilista desta sociedade de massas é reforçado por outros fatores, como, por exemplo, os mass media que "são a melhor escola para os demagogos, como estes retiram o seu poder do facto de o povo, à força de se alimentar de uma linguagem que mais não faz do que simplificar, não compreender mais nada, nem querer ler ou ouvir coisas diferentes" (p. 25). Acaba, deste modo, por se desenvolver uma sociedade obcecada por trivialidades, cultivando a banalidade e a tagarelice, atolada em ressentimento e medo, onde a política acaba por se tornar assunto de demagogos. Por outro lado, explora-se uma cultura do ressentimento que elege um bode expiatório que acusa de causa de todos os males: o judeu. Daí  concluir Riemen que os disfuncionamentos sociais e a crise económica não bastarem para explicar a ascensão do fascismo; é que "o fascismo está demasiado enraizado no culto do ressentimento e no vazio espiritual" (p. 35). A par desse clima espiritual, Riemen acusa também a arrogância e a cobardia das elites  sociais em Itália e na Alemanha. Por exemplo, os liberais deixaram de defender o ideal da liberdade e do humanismo europeu, para se interessarem apenas pela liberdade dos mercados; os conservadores, por sua vez, estavam preparados para trocar, sem escrúpulos, os valores espirituais pela preservação do seu próprio poder.
                Esta enraizamento do fascismo num determinado ambiente espiritual que o favorece, leva-nos a concluir que o fascismo não desapareceu com o fim da guerra. A crise moral, a estupidez organizada,o embrutecimento, a trivialidade, tudo isto contribui para um clima propício ao regresso do fascismo.
                Esta colocação do fascismo no âmbito da crise dos valores e da cultura leva-nos a ter que reconhecer a importância duma educação humanista que cultive nos indivíduos, desde muito cedo, os sentimentos de justiça e igualdade, os ideais da beleza e da harmonia, o compromisso com a responsabilidade e a solidariedade para com o nosso semelhante. Nesse sentido, o papel da filosofia na educação dos jovens poderá sair reforçado, na medida em que contribui para o desenvolvimento duma atitude cidadã e crítica, apoiada em valores espirituais que constituem, afinal, o nosso próprio património civilizacional.


[1] Rob Riemen, O Eterno Retorno do Fascismo, Lisboa, Editorial Bizâncio, 2017 (2ª ed.), 78 pp.
[2] Ver entrevista a Rob Riemen aqui.


sábado, 18 de agosto de 2018

Quando o sol


Temos que ir.
Como se o mundo acabasse
Numa tarde de facas e
Sol que nunca mais finda
A pino.

Oiço as paredes
A cal branca das paredes
e a memória das cigarras em guerra.

A água corre?
Rumorosos regatos recordam-me
Tardes. É assim que cresço
Entre essa lembrança e a dor
De dias. A casa abate-se sobre mim
E sobre o meu desejo cresce um corpo
Que ainda não sei até onde vai.

Se consigo escrever é porque desfaleço
Nas palavras que não consigo dizer.
Odeio as letras que me faltam, porque
Há um excesso. Nas borbulhas do corpo, nas
Minhas mãos. Em tudo o que dói e sangra e
Se recorta da brancura dos lençóis.
Amo e no entanto percorro os dias
Infeliz. Deliciosa tortura esta
Feita de tesouras, musgo e pele.

O teu cheiro eterno persegue-me
Como se fosse uma sentença, uma prisão
Para sempre. Vá para onde for, persegue-me o teu cheiro
E as tuas mãos, e o teu olhar de mar
E outras coisas que eu sei que aparecerão sempre
Por mais que fuja e me afaste.

És assim a mais terrível emboscada.
Terrível, até quando te ris.

E é pela tua calma indizível
Que vai caindo a tarde e
o Sol esmorece
Cansado.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Quando os teus olhos fecham é noite


De ti para mim o vento corre

Com os inacessíveis segredos
E as histórias onde percorre
O teu corpo os meus dedos.

Os ventos é que acedem
Por entre corredores à fortaleza do bem-amado
É a eles que os lábios pedem
A memória de cada centímetro esquadrinhado.

Estranho e máximo conhecimento
Em cada pêlo a sua marca
Aí se guarda em cada um a sua Babel
Cuja torre toda a história abarca.

Pelos teus olhos passa agora um laranjal
Reclamado ávido p’la m’nha sede
Pois seus frutos e carne me refrescam
As lembranças feitas duma rede
Para os peixes que no vento pescam

E adormecem quando luzes soam
No pintado céu de papel
Peixes que no vento voam
Enganados p’lo mar da tua pele.


(Sesimbra, 2009)

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Os mexilhões são sempre os mesmos

Sempre que acontece um desastre nacional, descobre-se que alguém ignorou os avisos  da sua eventualidade, esqueceu na gaveta os estudos e os relatórios que permitiriam a compreensão antecipada da situação; sempre que ocorre um desastre nacional, descobre-se que há mortes e feridos que podiam ter sido evitados e não deviam ser agora chorados. Sempre que há um desastre nacional descobre-se que há sempre alguém que lucrou com isso, houve luvas, e ao mesmo tempo vai passeando incólume e sem remorso e até é capaz de fazer coro com os ofendidos, alimentando a tragédia. Sempre que acontece um desastre nacional, aparece sempre alguém apontando um dedo acusador, descobrindo-se depois que afinal também cometeu no passado os mesmos erros e ocultando as mesmas práticas negligentes e que os atuais pecadores estiveram afinal do lado da acusação de então e que todos, pecadores e acusadores, sempre que acontece um desastre nacional dançam as mesmas músicas que sabem tocar sem pauta, porque a melodia está-lhes na massa do sangue. Sempre que ocorre um desastre nacional, sabemos que estamos em Portugal e que os mexilhões são sempre os mesmos, iludidos e adormecidos pelas melodias de sempre do nosso descontentamento.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Números que impressionam ou como a Europa esquece o seu passado


Vejamos outros números impressionantes: durante um século, entre 1815 e 1914, 55 milhões de europeus, donde perto de metade, isto é, 21 milhões, de 1871 a 1901, atravessaram os mares, naquilo que se pode considerar a maior vaga de emigração da história[1].
Perante estes números, como classificar a atitude de alguns dirigentes europeus face à emigração?


[1] Cf. Albert JOURCIN, Prologue à notre siècle 1871-1918, Paris, Larousse, 1968, p. 53.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Refugiados - o que dizem os números


Este problema das migrações em massa que agora preocupa a Europa e que foi objeto da última cimeira europeia em Bruxelas, dominada pelas ameaças de bloqueio por parte da Itália e das peculiares posições de Hungria e da Polónia, enquadrada no que poderíamos designar por deslocações em massa, já aconteceu na Europa, nomeadamente no seguimento do fim da Segunda Guerra Mundial. E aí, os números são impressionantes. Só na Alemanha registaram-se 17 milhões de de pessoas deslocadas e na Europa, considerada como um todo, observou-se a deslocação pela força durante a guerra, de mais de 40 milhões de pessoas[3]. O desaparecimento de comunidades estáveis, mal contidas nos territórios que foram sendo definidos por conveniências conjunturais leva à conclusão de que a Europa "já não era uma constante fixa" e passara a ser instável e transitória[4]. Estas deslocações de grande massas de população parecem ser uma constante na história recente da Europa.
Por outro lado, o que nos dizem os números sobre as recentes deslocações de refugiados que chegaram à Europa? É um número significativo? É que estamos a falar de menos de 1% da população total da União Europeia! Dramática é a situação, por exemplo, do Líbano, que alberga quase 1,2 milhões de refugiados sírios. Ora, o Líbano é um país com uma população total de cerca de 4,5 milhões de pessoas...[5]
Perante estes números e o seu real significado, não estaremos diante dum problema cuja solução se quer adiar na medida em que a crise dos refugiados está claramente a render votos aos partidos populistas e de extrema-direita? Não é por acaso que o partido de Salvini regista já uma subida nas sondagens de 8% nas intenções de voto em relação ao resultado obtido mas eleições de 4 de março. Perante um problema que traz tantos benefícios para os políticos conservadores que estão à frente da União Europeia, donde é que poderá vir um esboço de solução?



[3] Cf. Keith LOWE, Continente Selvagem - a Europa no rescaldo da segunda guerra mundial, Lisboa, Bertrand Editora, 2013, p. 55.
[4] Op. cit., p. 61.
[5] Patrick Kingsley, A Nova Odisseia - a história da crise europeia dos refugiados, Lisboa, Relógio D'Água, 2016, p. 18

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Quando é que terminou a Segunda Guerra Mundial?

Sempre me questionei sobre o que é ser europeu. Olhava para os ingleses, para os franceses e para os 
italianos ou alemães e interrogava-me sobre o que haveria de comum entre nós para que nos pudéssemos afirmar enquanto cidadãos europeus.
Reparo que aqueles que escolhi estarão mais próximos de nós. Exclui, inconscientemente, dinamarqueses, suecos ou finlandeses, os europeus do norte. A dificuldade de haver algo em comum enquanto europeus seria de certeza maior. Mas, então, que dizer daqueles que vêm da Europa do Leste, romenos, búlgaros, húngaros, sérvios? O que temos em comum?
Nos últimos anos, a problemática em torno do que é ser europeu agudizou-se. Agudizou-se dramaticamente com a chegada ao poder de políticos populistas e de extrema-direita, xenófobos, nada interessados em acolher os outros que não são europeus. Mas, o que é então ser europeu para esses políticos? Que valores envolve a cidadania europeia?
Reconheço que sabemos pouco da sua história e da sua geografia instável. Essa instabilidade entre etnias, povos e nações, mal contidos em fronteiras desenhadas num clima de ressentimento e no rescaldo dos maiores conflitos bélicos que assolaram o continente europeu, dificulta esse conhecimento. Sei pouco sobre essa outra Europa, os compêndios escolares de História excluiram essa outra Europa, a História Universal desenhou-se sobretudo a ocidente e através do mundo descoberto por esse ocidente.
Já há algum tepo que decidi estudar e conhecer um pouco mais essa outra Europa. Provavelmente vou fazê-lo no pior período que a Europa está a atravessar. Mas talvez seja o momento mais estimulante, o momento em que a crise agudiza o nossos entido crítico.
Como pensar a Europa? Por onde começar? O historiador Keith Lowe, no seu interessantíssimo livro Continente Selvagem - a Europa no rescaldo da Segunda Guerra Mundial[1], começa por nos dar um dado importante: é que a guerra não terá terminado com a derrota de Hitler. Até refere o caso de alguns polacos para quem a segunda guerra mundial, tendo começado com a invasão do seu país tanto pelos nazis como pelos soviéticos, só teria terminado com a partida dos tanques soviéticos do seu país, em 1989.
Quer dizer, a guerra continuou, sob outras formas, porventura mais subtis, para depois de 1945. Continuou até quase ao fim do século vinte! O que aconteceu entretanto? Como foi vivido esse período? Lowe ensaia uma resposta: "o fim da guerra não significou o nascimento de uma nova era de harmonia étnica na Europa"[2]. Com efeito, os ressentimentos entre comunidades e nações continuaram e talvez isso nos ajude a compreender melhor os problemas com que nos debatemos hoje. Um problema mal resolvido é um problema que se tornou maior.


[1] Keith LOWE, Continente Selvagem - a Europa no rescaldo da segunda guerra mundial, Lisboa, Bertrand Editora, 2013, 527 pp. Vale a pena ver a apresentação do livro pelo próprio autor aqui.
[2] Op. cit., p. 18.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

O interesse pela Filosofia em 50 segundos

Para quem tem interesse pela Filosofia e a ela pode dedicar 50 segundos, eis aqui um curtíssimo video onde se reafirma o interesse pela Filosofia.



domingo, 13 de maio de 2018

Como os meus cães me tornam mais humano

Gorky e Gaudí

O olhar dos meus cães, longe de sugerirem uma qualquer indistinção homem-animal[1], devolvem-me e estimulam a minha humanidade. Quando o Gorky me olha espantado ou o Gaudí se aninha no meu colo, eu torno-me mais humano. A vantagem única de lidar com os animais é que temos a possibilidade de nos tornarmos mais humanos e melhores pessoas. É tão verdade, como o seu contrário. Aquilo que sabemos da tragédia de alguns animais revela também o que há de pior no coração dos homens, a sua impiedade e, pior, a sua indiferença em relação ao outro.
A nossa casa habitada pelos nossos cães, a nossa sala de estar, de livre acesso, torna-se mais humana. A casa é, com eles, um espaço mais humanamente habitado. A sua presença remete-nos a todo o momento para o nosso habitar, para o nosso modo de habitar. Uma casa com cães é indubitavelmente habitada por pessoas.
Emmanuel Lévinas (1905-1955)
Alain Finkielkraut, no seu ensaio sobre o século XX, A Humanidade Perdida[2], relata-nos um episódio passado com o filósofo francês Emmanuel Lévinas, oriundo duma família judaica da Lituânia, e que este regista aquando da sua experiência enquanto prisioneiro do regime nazi, detido num campo na Alemanha[3]. Ora, um dia, teria aparecido no stammlager um cão que estava abandonado. Os prisioneiros deram-lhe o nome de Bobby e o Bobby adquiriu o hábito de os cumprimentar com alegres latidos, quer nas concentrações matinais, quer quando regressavam do trabalho[4].
Esse cumprimento era uma forma de reconhecimento dos prisioneiros que sentiam, desta forma, que lhes era devolvida a sua condição de seres humanos. Reconhece Lévinas que aquele comportamento do Bobby era para eles, prisioneiros sem esperança, um reconhecimento essencial naquela situação. O cão Bobby devolvia-lhes a humanidade suspensa. Por essa razão, passadas algumas semanas, as sentinelas alemãs decidiram expulsar o animal.


[1] Voltarei a este tema, mas reconheço que é neste ponto do suposto "perigo" da indistinção homem-animal que se acoitam muitos dos irritados adversários dos direitos dos animais, como se pode ver a propósito da recente legislação aprovada sobre a possibilidade dos animais acompanharem os seus donos nos restaurantes.
[2] Alain Finkielkraut, A Humanidade Perdida - ensaio sobre o século XX, Porto, Ed. ASA, 1997, 134 pp.
[3] Emmanuel Lévinas, «Nom d'un chien ou le droit naturel», in Difficile Liberté, Paris, Albin Michel, 1976, p. 201.
[4] Alain Finkielkraut, op. cit., p. 10.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Gipsy, um visiting schollar de verdade


O Gipsy chegou à nossa casa por volta da Páscoa de 2017. A intenção inicial da Filipa que
o trouxe foi subtraí-lo ao ambiente hostil do bairro onde ele nascera e passara o seu primeiro ano de vida e ainda vivia, ou melhor, sobrevivia, pois todos os seus irmãos da ninhada acabaram por morrer, vítimas de atropelamentos, doenças não tratadas, maus tratos infligidos pelos garotos do bairro, não passando do primeiro ano de vida.
Até chegar à nossa casa e interagir com os matulões que já cá estavam, nunca nos passara pela cabeça vir a adotar um cão minúsculo, risível, irrisório. Foi bem recebido, mas, no início, não viera para ficar.
Para ficar, o Gipsy, que entretanto mudara de nome, adotando este em homenagem ao bairro onde nascera[1], teve que vencer, ou antes, derrotar, os nossos preconceitos acerca de cães tão pequenos. Apesar do seu tamanho de cão miniatura, o Gipsy teve que conquistar um espaço decisivo na casa, nos nossos corações e na nossa disponibilidade mental[2]. E teve que se impor àqueles que, já cá estando, se arrogavam do poder e domínio que já possuíam por razões de antiguidade e de estatuto. Era estatuto, mas sobretudo estatura. O Gipsy cabia na boca do Gorki ou do Gaudí. Só que conseguiu caber no coração deles.
O Gipsy conquistou tudo o que tem. Sem ajudas excecionais, privilégios especiais, subsídios duplicados. Quando vivia na raia do concelho de Lisboa (o bairro está colado ao concelho de Loures), nunca reclamou ou recebeu qualquer ajuda de custo por vias duma qualquer condição motivada por uma qualquer insularidade, periferia ou interioridade. O Gipsy é um lutador de causas singulares, mas só pode contar com a sua mente rápida e ágil, a sua resiliência e a sua capacidade de triunfar sobre a adversidade. O Gipsy desenvolveu um catálogo de competências próprias para enfrentar os tempos modernos.
O Gipsy tinha vivido na rua, sujeito ao frio inclemente e à chuva impiedosa; tinha passado fome e sede muitas vezes e muitas vezes tinha levado pancada sem perceber porquê e para quê. Contudo, tinha feito da adversidade o ambiente propício[3] para desenvolver skills de exceção. Por isso, já chegara mais longe que os seus irmãos, os seus companheiros de infortúnio.
Mas havia outra coisa. O Gipsy, todos os dias, logo de manhã, seguia os miúdos do bairro até à escola e aí se introduzia à socapa, primeiro ludibriando a vigilância das funcionárias, contando com a sua cumplicidade depois. Com efeito, todos os dias entrava na sala da Filipa e assistia sossegado, num canto, ao trabalho desenvolvido na aula. Em suma, o Gipsy tinha uma vantagem que o destacava e que resultou de ir todos os dias à escola. Podem dizer que ele pouco aprendia, mas isso não o tornava pior aluno que a grande maioria.
O Gipsy, passado um ano, regressou à sua sala,
mas apenas para matar saudades.
O Gipsy era, de facto, um visiting schollar como alguns, um assistente convidado como outros, mas com as mesmas capacidades de ambos, arrivistas dos novos tempos. Foi mais vezes à escola que o Feliciano Barreiras Duarte e que o Relvas. Não obteve nenhum diploma, mas também não forjou nenhum[4]. Foi todos os dias à escola e conquistou o coração generoso da professora.
E provou que a educação, uma boa educação, pode mudar a vida das pessoas. E dos cães.




[1] "Nascer" é um eufemismo. Cães como o Gipsy, nestes ambientes, não nascem, aparecem. Também não morrem, desaparecem, deixam de se ver. Até que aparecem... já extintos. Neste sentido, estes infortunados cães são a prova viva e exemplar duma sociedade de classes. Contra os neoliberais que inundam o pensamento das sociedades atuais, o Gipsy e os seus irmãos demonstram que o pensamento de Marx continua bem vivo.
[2] O Gipsy obrigou-nos a repensar o significado do que é conviver com quem é diferente. Não bastam as pias perorações bem intencionadas do multiculturalismo. Já agora, como recordava Engels a propósito da práxis como critério da verdade, the proof of the pudding is eating.
[3] Não sou cínico ao ponto de usar a expressão do agrado dos mentores neoliberais e, em vez de lhe chamar "ambiente hostil", apelidá-la de "janela de oportunidades".
[4] A propósito do diploma forjado da dirigente do PP espanhol, Cristina Cifuentes, veja-se o artigo de Milagros Pérez Oliva, publicado na edição de hoje de El País e justamente intitulado, «La corrosión moral y el precio de mentir en politica», concluindo que ao invés do que se passa em Espanha, no Reino Unido a mentira tem consequências políticas relevantes, como aconteceu com a ministra do Interior, Amber Rudd. Aliás, no gabinete de Theresa May, são já três os seus membros que se demitiram desde novembro passado por mentir. Cf. o artigo referido aqui ou em: https://elpais.com/elpais/2018/04/30/opinion/1525113476_754429.html
(acedido em 1 de maio de 2018).

terça-feira, 24 de abril de 2018

O cocó do Gipsy e a ética de Kant


A ética kantiana carateriza-se pelo papel fundamental que o conceito de dever assume no
centro da sua arquitetura conceptual. Assim, uma ação valiosa do ponto de vista moral é, segundo Kant, aquela que se realiza segundo o dever e não conforme o dever. O sujeito moral age segundo o dever, realiza as coisas certas pelos motivos certos. O que se distingue daquele que age conforme o dever, isto é, poderá fazer as coisas certas mas pelas razões erradas. Por exemplo, age segundo o dever o comerciante que não engana os seus clientes porque considera que é assim que se deve agir. Age conforme o dever, por exemplo, o comerciante que não engana os seus clientes porque teme ser descoberto e, em consequência, perder a clientela. Estas ações são semelhantes do ponto de vista externo, mas diferem no princípio que cada um dos sujeitos elegeu como determinando a sua ação. Complicado?... O meu pequeno pinscher Gipsy dá-nos uma ajuda!... Outro dia, à noite, enquanto conversava com um vizinho, o Gipsy resolveu depositar um cocó junto de uma árvore. O meu vizinho aconselhou-me a não ligar, porque era um cocó insignificante e servia de fertilizante para a árvore. Era verdade, mas eu achei que devia apanhar o cocó do Gipsy. O meu vizinho tinha razão, mas eu devia fazer o que era correto. Agi segundo o dever. Mesmo que o cocó do Gipsy seja biodegradável e ridículo face ao lixo que se acumula na via pública na freguesia de Benfica, o dever impõe-se ao sujeito moral, independentemente das consequências irrelevantes das nossas ações. Por essa razão que, embora o comportamento de alguns deputados não tenha ferido nenhum dispositivo legal, poderá ser questionável do ponto de vista ético. É que tudo se passa e resolve na consciência de cada um. Mesmo que se trate de cocós insignificantes ou de viagens de deputados.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

A palavra livro e a palavra balão


Para quem ama os livros, como eu, reconheço que a palavra Livro não é particularmente bela, à altura da realidade que refere. Não é uma palavra bem dotada.
A palavra que referisse essa realidade que temos designado por livro, para já livro, devia ter o significado intrínseco que encontramos, por exemplo, na palavra balão.
Quando eu digo balão, quando me deparo com a palavra balão, eu já estou a segurar um balão, um balão que salta, que voa, um balão cheio de ar, elástico, onde eu, ao agarrar com as mãos, afundo os meus dedos em garra. Agarro em garra o balão. Quando eu digo balão eu já estou a agarrá-lo com as mãos. A apertá-lo. Não se passa isso com o livro. E tenho muita pena. Essa fantástica realidade que contribuiu ao longo da História para estruturar as sociedades merecia uma fantástica palavra. E não é o caso.
Era uma palavra muito complicada. Tinha de ter cheiro. Tinha de ser desfolhada e em cada folha despertar surpresa, energia, vontade de saber, muita emoção… Deveria ser uma palavra muito distante da que dispomos.

domingo, 8 de abril de 2018

Um falso engenheiro

Alves dos Reis (1896-1955)
Continuando as minhas deambulações leitoras, desta vez à volta do segundo volume das Memórias de Cunha Leal, relativas aos anos que vão de 1917 a 1925, descubro através deste intrépido republicano que Alves dos Reis, não se limitou a falsificar notas de banco e inaugurou uma prática que teria os seus seguidores coevos. A situação relata-se rapidamente. Em meados de 1916, em pleno governo da União Sagrada, presidido por António José de Almeida e que também era Ministro das Colónias, este prontificou-se a nomear Alves dos Reis para diretor do Caminho de Ferro de Moçâmedes, desde que tivesse a categoria de engenheiro! O que não acontecia, mas também não era problema para Alves dos Reis. É assim que, "nessa emergência, falsificou uma carta de engenheiro emitida por acreditada escola britânica", cujos diplomados eram reconhecidos pelo nosso Ministério da Instrução. E foi desta maneira singela que Alves dos Reis, ou melhor, o engenheiro Alves dos Reis foi parar a Angola. Conta quem o conhecia, que o engenheiro "não se coibia de andar, frequentemente, em tratos diretos de lubrificação do equipamento ferroviário". Esta atitude diligente valeu-lhe, conta ainda Cunha Leal, o epíteto apropriadíssimo de engenheiro da almotolia. Há engenheiros para tudo, como tudo pode ser engenheiro.

Cunha Leal, As Minhas Memórias - vol. II, Lisboa, Ed. do autor, 1967, 475 pp.

sábado, 7 de abril de 2018

A rolha do rei da rússia


Espera a ainda donzela
À noite com o seu gargalo
Que o filho do rei da rolha
O vá com acerto alargá-lo.

E assim consumar-se o casamento
Conforme fora planeado
Na cama os dois impérios brindam
É o final com que o negócio fica fechado.

E do encontro da cortiça com o vidro
Apesar de estranhos e inesperados materiais
Espera-se que um varão sucessor
Aos negócios acrescente algo mais.

E da cabeça do novel varão
Virá nova matéria-prima
Que mesmo não se sabendo o que é
P’lo menos caberá na rima.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

A História parece que se repete

Salazar e Gomes da Costa
Um dos meus divertimentos é a deambulação leitora. Isto é, ler ao acaso, seguindo sem orientação prévia, as sugestões que vão surgindo. Ler como se não tivesse nada para fazer. Ora, enquanto me vou dedicando ao estudo do último ano da nossa primeira República, descobri que, tal como Spínola publicara no ano anterior à revolução de abril de 1974, um livro ("Portugal e o Futuro") onde questionava as orientações do governo de Marcello Caetano em relação ao futuro dos nossos territórios ultramarinos, também o general Gomes da Costa, que iria liderar em maio de 1926 o movimento que iria pôr fim à República e dar origem ao Estado Novo de Salazar, publicou no ano anterior um livro ("A Guerra nas Colónias"), onde o autor formula críticas ao poder político na organização das forças expedicionárias. A História não se repete, mas, por vezes, até parece. E é por isso que sempre se aprende com ela. E eu me vou deliciando a deambular por estas histórias.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Terra absoluta sob céu imóvel


A terra é que segura

O céu absoluto
De nuvens, imóvel.

Uma terra escanhoada
De pilares invisíveis
E que as cigarras procuram
Na ilusão duma sombra.

Uma terra de terra
Esboroada pelo tempo
E pelos homens
Que caminham
Sem direcção.

sábado, 3 de março de 2018

O remorso do homem branco ou o sentimento de culpa dum adolescente desiludido


Pascal Bruckner é um filósofo e ensaísta francês, nascido em 1948 e geralmente associado ao neoconservadorismo europeu[1]. Contudo, o seu percurso, como muitos intelectuais franceses que estiveram ligados ao grupo dos «nouveaux philosophes» de que fazia parte André Glucksman e Bernard Henri-Lévy, também teve o seu passado esquerdista, concretamente ligado ao maoísmo e que, tal como os seus compagnons de route, desenvolveu uma crítica feroz (ou ressentida) ao marxismo, como que para expurgar os demónios da adolescência. Percurso que também encontramos entre muitos políticos e intelectuais portugueses.
De Bruckner, autor de vasta obra, muitas vezes dedicada a uma reflexão sobre as relações amorosas na contemporaneidade e outros temas do viver quotidiana, surgiu em 1983, Le Sanglot de l'Homme Blanc, e que foi editado entre nós com o título O Remorso do Homem Branco[2].
Basicamente, Pascal Bruckner tenta denunciar a má consciência e remorso dos europeus que procede a um ajuste de contas com o passado colonial do continente europeu.
Demonstra que há uma evolução política que anima uma certa intelligentsia de esquerda e que vai do anti-colonialismo do pós-guerra para o terceiro mundismo dos anos 60. Aqueles setores da esquerda estão, assim, desiludidos com a ausência de perspetivas políticas na Europa, mas ganham um certo ânimo com o ódio de si, alicerçado na ideia de que o homem branco é mau, o que vai provocar um desejo de arrependimento e penitência, abrindo um caminho de expiação militante, apesar de coabitar com a indiferença da maioria da população face aos países subdesenvolvidos.
Os terceiro-mundistas seriam animados por uma "confusa certeza": a da infâmia do Ocidente[3].
É assim que muitos progressistas europeus estariam dispostos a auto-punir-se e auto-imolar-se para "resgatarem as obrigações contraídas pelos seus pais"[4].
Ao mesmo tempo, esta auto-flagelação do homem europeu elege os EUA como bode expiatório, um alvo ideal por se tratar ainda dum parente próximo. A América seria a "filha desnaturada", enquanto a península europeia, para se libertar da sua má consciência que lhe advinha do seu passado colonial, se tornava num "novo departamento do Terceiro Mundo"[5]!
Ora, esta pretensa denúncia das propostas multiculturalistas acaba por ser a sua encapotada confissão dos seus amores pela economia capitalista e pela cultura burguesa e conservadora. Não era sem razão que o americano Irving Kristol, outro teórico do neoconservadorismo, defendia que o problema da economia capitalista não era uma questão económica mas cultural e que o combate era ainda um combate no campo ideológico. Por isso (ou para isso) também, modestamente, cá estamos.



[1] Entre nós foi publicado pela Gradiva, em outubro de 2017, Um Racismo Imaginário Islamofobia e Culpabilidade, tradução do original que apareceu em França no início de 2017. Retoma aqui algumas das suas ideias fundamentais contra o multiculturalismo e o racismo dos anti-racistas. Sobre esta última tese, ver aqui.

[2] Pascal Bruckner, O Remorso do Homem Branco, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990, 265 pp.
[3] Cf. Pascal Bruckner, op. cit., p. 31.
[4] Op. cit., p. 32.
[5] Op. cit., p. 37.