sábado, 16 de fevereiro de 2019

Morder pelas costas ou o elogio da traição


O Gipsy quando decide morder em alguém que se cruza connosco, espera sempre que essa pessoa passe e, pelas costas, atira-se às pernas do transeunte. Chama-se a isto um ataque traiçoeiro e o Gipsy, o nosso pequeno pincher, gosta de atacar pelas costas, morder à traição. Quando o outro menos espera e a nossa vigilância abranda, o Gipsy volta-se e rapidamente tenta deixar no incauto a marca dos seus pequenos dentes. Na maioria das vezes, conseguimos evitá-lo, pois já sabemos dessa sua tática, como também começamos a perceber e identificar o tipo de pessoa que suscita no Gipsy esta sua mania pouco simpática, mas a isso havemos de voltar um dia, porque envolve problemas com as minorias étnicas e razões quase xenófobas por parte do pequeno pincher.
Ora, atacar alguém pelas costas deve ser dos comportamentos que mais merecem censura. A esta censura do comportamento traiçoeiro corresponderá o elogio da frontalidade, o que não é traço da personalidade do Gipsy. Segundo a cultura oficial da nossa sociedade, elogiamos aqueles que são frontais, que dizem o que pensam na cara das pessoas e não optam por, manhosamente, irem por trás espetar a faca nas costas daquele a quem não temos a coragem de enfrentar. A nossa sociedade e a nossa escala de valores coletiva não se dá bem com esse comportamento traiçoeiro e falso. A frontalidade coincide com honestidade e verdade; a traição vive e alimenta a mentira, a dissimulação, a desonestidade, a velhacaria.
Assim, o comportamento do Gipsy não só merece toda a nossa censura, como à luz do nosso entendimento judaico-cristão e dos nossos valores, revela um mau caráter. O Gipsy devia, deste modo, ser considerado como possuindo um mau caráter. Claro que o Gipsy não se importaria com esses considerandos. O seu espírito utilitarista e pragmático facilmente se desembaraçaria dessas teias moralistas. E ele, cinicamente ou dotado de uma lucidez cínica, justificar-se-ia, explicando que só chegou aqui a este mundo cão, não se prestando a frontalidades e heroísmo estéreis que acabariam por desgraçá-lo.
O Gipsy é um cão pequeno, que nasceu na rua e foi educado, literalmente, a pontapé. Por outro lado, o mundo ainda não deu os suficientes passos civilizacionais para proteger decentemente os mais fracos. Sim, ele ataca pelas costas, porque desse modo tem mais hipóteses. Afinal, onde é que ele iria buscar algumas vantagens competitivas que equilibrariam a contenda?
Sim, o Gipsy é traiçoeiro, ataca e morde pelas costas, quando menos se espera. Porque o que o preocupa mesmo é sair-se bem da sua ação e não ser gratificado por elevados padrões morais a serem reconhecidos no seu elogio fúnebre.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Será que.


Será que Freud, por exemplo,
também sentia
muito de vez em quando
o ruído do seu estômago
alertando-o para uma insondável interioridade.

E será que Kant
também
muito de vez em quando
se peidava com discreto espalhafato
(como se fosse possível)
imaginando então
o protesto da ding-an-sich?

Será que estes homens tão especiais
também
quando calhava
batiam uma desalmadamente
ou não, oh não, nem pensar,
ou antes 
apenas
deixaram para nós
as suas ideias e os seus livros
aceitáveis.

(11-2-2019)

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Um outro tempo...

O tempo histórico não se compadece com a divisão administrativa em séculos e anos, em
meses e em dias. Por exemplo, o século XIX dura mais que cem anos. Em rigor, o século XIX é bem mais longo, estende-se da Revolução Francesa até ao deflagrar da Primeira Guerra em 1914. O ano de 1917, pela riqueza e impacto dos seus acontecimentos vai para além dos seus 365 dias do calendário. E, ultimamente, tenho concluído cada vez mais que o século XXI começa na década de 70 do século XX. 
O calendário pode ser e é muito útil. Mas a realidade é sempre mais rica que a também útil contagem do tempo e o passar das folhas das agendas. E é o que nos vale. A nossa idade pode-se contar pelo número de primaveras, mas há quem nunca venha a passar dum inverno sombrio e dum outono melancólico. Como há quem nunca passe dum adolescente e pateta verão.
Já quanto à minha idade não a conheço bem. Mas podia ser a da eternidade de alguns momentos, como provavelmente todos acabarão por desejar.