sábado, 19 de outubro de 2019

Não há futuro no mundo da canção


Invetivou a formiga
A cantadeira cigarrinha
«E se eu lhe cantar uma cantiga
Por uma saca de farinha?»

A formiga sempre apressada
Mais um pouco nem reparava
Na cigarra esfomeada
E na figura que causava.

A pobrezita cigarra
Disse novamente à formiga
«Tome lá esta guitarra
E encha-me a barriga.»

Fico sem o meu instrumento
Que vai ser de mim sem ela
Sem guitarra p’ra cantar
Vou ter que cantar à capela.

Mas estou tão aflita
Sem nada para morfar
Além disso não tenho guita
Só a guitarra para empenhar.

A cigarra olhou para a formiga
Com ar de reprovação
«Já devias há muito saber
Que não há futuro na canção».

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

terça-feira, 3 de setembro de 2019

O cuco revoltado


Um dia o cuco
Revoltou-se
Estava cansado
Da sua vida de rotina
Sempre sempre preocupado
Ou mesmo obcecado
Em dar horas sempre à hora
E ser-lhe imperdoável
Ou mesmo censurável
qualquer fútil demora.

E vai daí fugiu do relógio
em que vivia
E desse trabalho horário
Pois antes preferia
Ser livre mesmo sem salário.

«E agora quem nos avisa
Que as horas estão a passar
Se já não temos um cuco
Para as poder cucar?»

«Com toda a precisão
Vamos andar atrasados
Ou chegar adiantados
Aos nossos afazeres
Sem saber que horas são
Como cumprir os deveres?»

Mas o cuco não quis saber
Antes queria viver sem as horas a dar
Pois é bem melhor viver
A dormir que... a trabalhar.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Um macaco no nariz

Um dedo explorador
Escarafunchando feliz
Deu de caras, salvo seja,
com um macaco que lhe diz:

«Não te quero por aqui
Explorando a minha casa.
Dá corda aos patins, e
some-te daqui! Basa!»

Tinha razão o macaco
Por ter ficado zangado,
pois o dedo no nariz
estava onde não era chamado!

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Afonso, um sapo sem sorte


Afonso, apesar de sapo, sempre desejou ir para além da sua limitada figura. Aliás, limitada é dizer   a um banho de lama. Tentou, nas primeiras vezes, chegar à fala com elas, argumentando que era bom rapaz, trabalhador, que vinha com boas intenções, que apesar da sua aparente audácia era tímido, e, fundamental, perseguia um ideal de igualdade. E chegou mesmo a confessar, perante os risinhos das miúdas, que já lera o Marx e o Saramago e era assinante do Magazine Littéraire. Mas as pequenas rãs não estavam para aí (ou para ali) viradas. Que os ideais da Revolução Francesa prejudicava-lhes a dieta. Assim mesmo.
pouco, a figura dum sapo roça as bandas do horrível inimaginável. Mas, continuemos. Afonso, chegando à idade de procurar companheira, idade anunciada com umas irritantes campainhas situadas no baixo ventre, a região hipogástrica e pelviana, e que não paravam de chinfrinar, o que, acontecendo a todos os seus amigos da sua idade, quando se juntavam, bem pareciam um coro grego anunciando uma tragédia iminente, pois, dizia, Afonso tratou de investir em idas frequentes até ao pântano mais próximo. Isto quer dizer que nem sempre o pântano traduz a pior fase da nossa existência, antes se revela aqui por uma inquietude constante e uma busca permanente. Estamos, pois, no pântano, mas próximo da indagação filosófica. E Afonso levava a cabo essa busca duma forma solitária, propositadamente solitária, um sapo que se queria solitário aquando desse aviso das campainhas, mas também porque sempre se irritara com a pele cheia de acne das colegas da sua idade, pelo que o pântano representava, também um corte epistemológico com o hábito e o costume. E enquanto os seus colegas de turma do colégio arranjavam imediatamente uma namorada logo nas primeiras semanas (até, talvez fossem dias!...), Afonso preferia passar as tardes, os fins de tarde, contemplando um grupo de rãs que procediam, nas margens do pântano,
                Contudo, o nosso Afonso era de ideias fixas. E apaixonou-se por uma pequena rã, de nome Ofélia. Esta não resistiu ao ar maduro de Afonso e aos elogios que este constantemente lhe dirigia. «Tens uma pele de estrela de cinema», dizia-lhe muitas vezes Afonso, esperando-a na margem. Na margem onde permanecia, pois ele não era bicho para aventuras aquáticas e desportos radicais. Radical, só na política, no mundo das ideias.
                Mal as companheiras se aperceberam do idílio, trataram de contar aos pais de Ofélia, que esta se andava a atirar, descaradamente a um sapo de nome Afonso. E puseram a circular no pântano o boato de que a inocente Ofélia se deixara seduzir por um sapo muito mais velho que ela, absolutamente peçonhento e esquerdista, perdoe-se a redundância. Os pais de Ofélia, desfeito o choque inicial, ainda pensaram ir pedir explicações aos pais de Afonso, mas limitaram-se a proibir a filha de tomar banho no pântano. Ofélia obedeceu, matutando na maneira que haveria de comunicar a Afonso aquela mudança de planos. Porém, os pais de Ofélia acabaram por pensar melhor no castigo e, temendo uma desidratação da filha, lá a deixaram voltar ao charco ao fim de uma semana. «Mas nem pensar em voltarem em conversar um com o outro. Que uma rã é uma rã, um sapo é um sapo e uma coisa é uma coisa e nunca, simultaneamente, o seu contrário», ditaram à filha. Ofélia disse-lhes que sim, que concordava, mas o seu pensamento mais profundo não era esse. Era outro.
                Ofélia regressou ao pântano, quase morta de saudades, e mais convicta do seu amor. A ausência despertara nos dois uma paixão arrebatadora, a roçar a violência. Conta quem lá esteve, no exato momento e lugar do reencontro, que aquilo foi uma cena de uma "tesão exuberante, bíblica mesmo". Os apaixonados resolveram casar no dia seguinte. Assim mesmo.
                Só que nestas coisas da paixão há sempre um perigo a espreitar. E rãs e sapos não escapam a esse virulento delíquo. O casamento acabou por durar apenas uma noite. Uma noite de infelizes descobertas.
                Quando, no leito conjugal, os jovens recém-casados se beijaram, Ofélia, por artes mágicas ou não tão mágicas quanto isso, transformou-se numa bela princesa! Numa bela princesa, assim mesmo!  O pequeno Afonso, momentaneamente pequeno, pois, ficou, primeiro, apreensivo, mas depois, repensando a sua situação e o seu futuro, começou a exultar com o que estava a acontecer. Ele, sem saber ler nem escrever, metaforicamente falando, com uma princesa deste porte assim no seu quarto, devia levá-lo a ter assento automático na corte!... Mas Ofélia, olhando para o sapo que já pulava de alegria junto dos seus pés, interrogou-o de forma altiva. «Mas, afinal, quem és tu? O que fazes aí, aos pés da minha cama?»
                Afonso começou a desconfiar que havia ali qualquer coisa de errado. E respondeu-lhe: «Ora, sou o Afonso, o teu marido!» Ofélia, perante aquela declaração ousada, recuou ligeiramente. «Afonso?... Quem?... O Henriques, o Afonso Henriques?... O Afonso segundo?... O quinto, o africano?... Mas... Mas... tu és um sapo, fosca-se!»
                Perante aquela súbita amnésia, Afonso ficou gelado e ainda tentou, timidamente, que se fizesse luz, alguma luz, na mente da agora princesa. «Mas acabámos de casar. Tu eras uma rã... Eras a minha rã!» Ofélia não parecia recordar-se de nada. Afonso voltou a tentar. «Até tínhamos combinado ir morar para a periferia, por causa das rendas elevadas.» Ofélia nem queria acreditar no que ouvia, no que estava a ser proferido por um sapo atrapalhadíssimo, engasgado e que a queria convencer que ela era uma rã. Uma rã, assim mesmo! Ela, senhora de um belo corpo, sentia aquilo como um insulto temerário. No auge da indignação, recuou dois passos. Perante este movimento de Ofélia, Afonso julgou, por momentos, que começava a dominar a situação e encheu o peito. Puro engano. Ofélia, que não se imaginava rodeada de filhos barulhentos e a viver numa casa de renda condicionada, na parvalheira dos subúrbios,  a remendar as camisas e as meias do marido uma vida inteira, e que, além do mais, sempre odiara aqueles animaizecos peçonhentos e de quem o povo dizia que, com uma cuspidela certeira, podiam causar a cegueira a um mortal desprevenido, não estava para aí virada. A sua vida seria cheia de glamour e não ao lado dum sapo. Dum sapo atrevido!...
                Ora, Ofélia ao recuar, apenas estava a ganhar balanço para o golpe final. E eis que, com a parte de dentro do pé, ou como diria o outro, com o pé que tinha mais à mão, desferiu um violento pontapé no estupefacto sapo, que o lançou pelos ares, projetando-o a várias dezenas de metros do local.
                «Um sapo venenífero... Uff!... Que nojo!», exclamou Ofélia, irritada com a impertinência do batráquio e regressando aos seus cuidados, já aliviada. Entretanto, a duzentos metros dali, o sapo-projétil refletia sobre o que lhe tinha acabado de acontecer, o volta-face da história, tentando descobrir algum erro que lhe tivesse escapado. E assim passou a noite até amanhecer, remoído por muitos pensamentos díspares, projetos de vingança e fortes dores na coluna, resultado mais imediato da sua odisseia aérea. Ainda pensou em abandonar os ideais de juventude, visivelmente magoado com a princesa que lhe calhara na rifa e com aquela partida do destino. Mas em vez de se tornar outra coisa que um radical igualitário, Afonso passou os dias seguintes a tentar beijar as mulheres que ele ía encontrando, an esperança de que alguma se transformasse na sua desejada Ofélia, rã de pele lisa e olhar apaixonado. E vão. Assim mesmo, em vão.
                Por essa altura, já Ofélia pousava nas capas das revistas do corazón, sempre convidada para as festas mais badaladas. E ninguém imaginava que a sua estonteante figura escondia, afinal, a de uma pobre rã que, no fulgor da sua inocente juventude, se apaixonara por um sapo que lutava por uma sociedade sem classes. Ora, pergunto, perante esta tragédia e as voltas inexplicáveis e insondáveis da história, vale a pena lutar? Foda-se, não! Assim mesmo, foda-se, com dores na coluna a acompanhar.

José Carlos S. de Almeida
julho de 2019, em Lisboa

domingo, 12 de maio de 2019

Falar e javardice


Falar, como o olhar, visa o poder. Falamos e olhamos para dominar o outro. Porém, o falar
tem um problema: o falar excessivo torna o discurso numa forma de elementar tagarelice. Entramos no domínio do que os franceses chamam "bavardage".
Não sei muito bem porquê, mas "bavardage" soa-me a javardice. O javardo é também um tagarela, alguém que não consegue parar de falar, de dizer banalidades, baboseiras. Fala tanto, que não consegue fechar a boca enquanto come. Javardice.
Não pára de falar porque fica incomodado, visivelmente incomodado, com o silêncio. Quando o silêncio se instala, o tagarela fica aflito, incomodado, não sabe o que há-de fazer com as mãos, onde pôr as mãos.
À mesa, pega na sardinha com as mãos e leva-a à boca. Faz o mesmo com a perna do frango assado. Desculpa-se, dizendo que é assim que a comida (o "comer") lhe sabe melhor. Quer ser autêntico, puro, dispensa os talheres e as regras mais elementares. Que não alinha em "modernices". Javardice. Javardice pós-moderna.

terça-feira, 30 de abril de 2019

A origem da literatura


A Cidade não admite os seus pobres que arrastam pelas ruas as suas feridas e deformações, estendendo a mão e apelando à consciência  daqueles que se deslocam nos seus múltiplos afazeres. Não se sabe donde vieram, como se instalaram aos poucos, como ocuparam as ruas sem que tenhamos reagido. Até que a situação se tornou inaceitável. Esperemos que não seja tarde. Que haja remédio. A nossa lassidão não pode ser compreendida como sinal de fraqueza. Os pobres acusam-nos. Impedem-nos de dormir.
                Em primeiro lugar, e eu até compreendo, são a marca visível que revela que a Cidade ainda não é perfeita, longe disso, e não consegue dominar a miséria. A sua miséria. Depois, os pedintes importunam a consciência dos transeuntes que afinal, nada podem fazer em relação a essa situação. Criou-se, assim, uma relação quase hostil entre os pedintes e a Cidade. Esta sempre se regulou por uma definição clara dos seus problemas e dos seus elementos. Nada existe por acaso e isso tem permitido que a sua estrutura e organização se solidificassem, que a Cidade ganhasse uma imagem invejável. Todos os seus elementos funcionam em função de uma missão claramente definida, atribuída, assumida. Deste modo, cada um percebendo o papel e a tarefa do seu vizinho, compreendia e justificava a sua missão, todos os dias. Ninguém caminha por acaso, ninguém se detém com súbitas dúvidas.
                Ora, a existência dos pedintes, o seu sem-lugar ambulante, a sua atopia nos propósitos sociais, introduz um rastilho de anormalidade que se pode tornar perigoso. Na estrutura da Cidade ninguém pode existir sem uma finalidade certa. Os pedintes surgiram à revelia desta lógica, o que é inaceitável e contrário ao progresso que todos desejamos.
                Mas os pedintes também se aperceberam desta nossa, digamos, hostilidade. E, aos poucos, foram compreendendo que a lógica da Cidade exigia de cada situação, um discurso, pelo menos, que a legitimasse. Foi assim que muitos pedintes começara a justificar por escrito a sua condição e o facto de terem de recorrer à caridade provável dos habitantes da Cidade.
                Os primeiros textos eram bastante elementares. Recordo aqui alguns que retive: «Não tenho pai, nem mãe e sofro de uma doença sem cura», ou «Tenho doze irmãos, o meu pai está tuberculoso e a minha mãe fugiu de casa».
                Com efeito, no início, os textos que os pedintes punham a circular não íam muito além destas lacónicas descrições. Os transeuntes paravam pouco tempo a informar-se da situação dos autores dos textos e a sua contribuição acabava por estar na razão direta dessa curta mensagem. Por outro lado, alguns pedintes começaram a fazer cópias que entregavam a colegas seus menos imaginativos ou de condição menos miserável, pelo que, rapidamente, esses textos acabavam por ficar conhecidos e desvalorizados. Alguns habitantes da Cidade chegavam a aborrecer-se com esse facto e, mal poisavam os olhos nos pequenos textos, abanavam a cabeça com ar de desaprovação e rapidamente continuavam o seu caminho. Outros havia que, no entanto, procuravam saber mais pormenores, não sei se para testar a sua autenticidade. Mas também havia quem ansiasse pela continuação das história ou pelo seu mais improvável desfecho. Por exemplo, no caso de a mãe ter fugido, gostavam de saber em que condições concretas isso tinha acontecido, se se prostituía, se tinha fugido com algum homem ou mulher, se deixara todos os filhos para trás, se deixou algum bilhete escrito (quando sabiam escrever, o que não era muito provável) e, em caso afirmativo, se podiam transcrever e acrescentar esse bilhete. Outros gostavam de se inteirar sobre as doenças que os tinha afligido. Também havia quem quisesse olhar de mais perto as deformações físicas que os pedintes anunciavam, para saber em que medida exata correspondiam ao que estava escrito. Avaliava-se aí, segundo alguns a veracidade e o realismo; para outros, isso não era o mais importante, e ficavam seduzidos pela capacidade de fantasiar. A esmola, depois, era dada na proporção da satisfação das pessoas que paravam para ler e viam satisfeitos os seus critérios. Do mesmo modo, começou-se a criar o hábito de regressar nos outros dias, junto dos mesmos pedintes, para saber se existiam novidades, se a história tinha progredido, se as suas dúvidas e apreciações  tinham sido contempladas pelos pedintes nos textos seguintes. Claro, que a tudo isto correspondia um aumento considerável das esmolas que eram entregues. Os pedintes não podiam ficar mais satisfeitos. Valia a pena escrever.
                Ora, tudo isto começou a exigir dos pedintes outra postura. E alguns começaram a perceber que os transeuntes que paravam junto deles estavam ávidos de notícias, de outras histórias, uma espécie de fuga ao quotidiano da Cidade. E que tudo isso devia ser passado a escrito. As mensagens que os acompanhavam começaram por isso a mudar de tom e estrutura. No início, apenas incluíam mais detalhes. Depois aprimorou-se o estilo. Finalmente, as informações passaram a ser fornecidas em vários cartões, podendo as pessoas adquirir esses cartões e regressando no dia seguinte, após a leitura das histórias, entregar a esmola que achavam adequada. Também havia quem adquirisse um cartão por dia, pagando-o na altura, mas colecionando todas suas continuações, até ao desfecho da história. Claro que alguns pedintes mais oportunistas prolongavam desnecessariamente as histórias, com pormenores sem conteúdo essencial, complicando os enredos, vivendo duma adjetivação exuberante. Gostos.
           Até que as autoridades perceberam que esta atividade talvez, sublinho talvez, não representasse problema para a Cidade. Tornaram-se, por isso, condescendentes em relação à multiplicação dos cartões e das histórias, não deixando, obviamente, de vigiar essa atividade. Isto é, também eles passaram a ler as histórias. Algumas continham referências à sua atividade, o que deixava satisfeitos os mais vaidosos.
                Mas não era verdade que tudo isto tinha em vista a satisfação dos que não escreviam, isto é, dos que não precisavam de estender a mão à caridade pública, daqueles que por efeito da lotaria tinham ficado ao abrigo das intempéries do destino?

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                Muito já se escreveu sobre a origem do romance e da literatura em geral. Eu percebo que a Cidade se interrogue sobre o modo como se iniciou uma das suas mais interessantes e fascinantes ficções. Mas o romance, género nobre, revela afinal uma origem muito plebeia e miserável, como podem ver.
                Provavelmente, por essa razão, não a devia ter contado para que se mantivesse uma áurea fascinante à volta dessa atividade tão criativa quanto misteriosa. Mas havendo tanta especulação à sua volta, não suporto mais a ideia de que alguns autores, de uma forma arrogante, queiram esconder a sua origem e tenham inventado histórias fantasiosas sobre a sua atividade, como se estivessem a inventar uma família brasonada para os seus antepassados miseráveis. Querem aproximar a sua atividade criativa e inspirada da atividade dos deuses!... Poderá haver maior arrogância?
                Ora, a história é bem outra e é tal como vos acabei de contar.
                Podem, pois, que a acabaram de ler, deixar-me a vossa esmola. Estou desempregado, a minha mulher abandonou-me por não suportar mais a nossa vida miserável, sem comida e sem um teto condigno. Ah!, e deixou-me com três filhos de tenra idade, magros, sujos e ranhosos.

José Carlos S. de Almeida, abril de 2019

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Por teu livre pensamento

Lindíssimo poema de David Mourão-Ferreira sobre os presos políticos de Peniche durante a ditadura fascista de Salazar, cantado por Amália. Inspirador(es)...
Para escutar aqui.

sábado, 20 de abril de 2019

A trela extensível


A Dona Belarmina, viúva, moradora da Praça da Alegria, em Lisboa, adquiriu um cãozinho passados cinco anos após o falecimento do seu saudoso companheiro. Estiveram casados mais de quarenta anos e, como não tiveram filhos, a súbita morte do marido fez abater sobre a Dona Belarmina uma onda enorme de solidão que estava prestes a afogá-la. Recordou-se, então, do avisado conselho do seu Paulino: «Se eu partir primeiro, compra um cão para te fazer companhia.» Belarmina não suspeitava que o conselho do marido apenas pretendia evitar que o seu lugar pudesse ser ocupado por outro; imaginava que um cão bastaria para afugentar qualquer pretendente que, face à viuvez de Belarmina, se visse acirrado para a conquista ou reconquista, nunca se sabia.
Porém, Dona Belarmina apenas queria afastar a solidão. Além disso, também se apercebera que muitas das suas amigas também tinham animais de companhia. Foi neste contexto que se decidiu pelo Piruças, um irrequieto caniche, cujas traquinices muito divertiram a sua dona nos primeiros tempos. De tal maneira ria com ele e por causa dele que chegou a temer que se estivesse a exceder para lá do que era recomendável, tendo em conta sua condição de recém viúva.
 O Piruças, como qualquer cão traquinas, gostava muito de correr. Quando se apanhava no jardim, à tarde, o Piruças divertia-se correndo atrás dos pombos, dos gatos e, obviamente, atrás de outros cães. Dona Belarmina tentava em vão acompanhar essas correrias. E, ofegante, acabava a chamá-lo o mais alto que podia, tentando fazê-lo regressar até junto da sua dona. Até porque o Piruças distraía-se muito facilmente e não reparava nos carros que circulavam junto do parque. Por várias vezes, Dona Belarmina ficou sem pinga de sangue ao assistir a travagens súbitas e violentas dos automóveis, evitando atingir o Piruças.
A chiadeira dos pneus no asfalto era como que um uivo angustiante que Dona Belarmina decidiu não mais ouvir. Foi por isso que resolvu adquirir uma coleira e trela eficazes que evitassem essas situações. Mas como também era incapaz de impedir o seu Piruças de fazer o que mais gostava, que era correr, teve que optar, aconselhada pelas suas amigas, por uma trela extensível, o último grito neste tipo de equipamentos. E, neste campo, fez questão de pedir na loja da especialidade, a maior trela extensível que tivesse. Mesmo que fosse para um pequeno cão como o Piruças. Belarmina, levando consigo, ao colo, o Piruças, explicou de forma categórica o que pretendia, usando um tom de firmeza aristocrática com pergaminhos que abafou os risinhos dos empregados da loja que, entretanto, tinham parado para escutar melhor aquela estranha cliente.
«Eu quero o que houver de melhor em matéria de trelas extensíveis. O melhor, quer dizer, o mais seguro e com mais alcance.»
O próprio dono do estabelecimento, «Aires – acessórios para animais de companhia e outros», fizera questão de a atender. Fixou as mãos abertas em cima do balcão e apoiando o corpo nos braços, um pouco inclinado sobre a cliente, mas acabou por recuar ligeiramente face àquele pedido. Quer dizer, face àquela ordem. Depois dirigiu-se ao computador.
«Acho que temos o que pretende. Acaba de sair. Mas tem de vir de fora… Da China!» E continuou a teclar rapidamente, meio oculto pelo monitor da máquina. «Su-zen La… trelas extensíveis infinitas…Su-zen La, Xangai.» Parecia um feiticeiro, a debitar uma fórmula mágica, num dialeto desconhecido. Depois soltou uma gargalhada. «Infinita? Uma trela infinita?... Esta publicidade exagerada…» Mas Dona Belarmina não se deixara impressionar.
«Desde que corresponda àquilo que eu quero, até pode vir da… Rússia. Quero a melhor trela extensível que existir no mercado!»
Os ajudantes aproximaram-se por detrás do patrão e foram espreitando, curiosos, os resultados da busca na Internet por trelas extensíveis, pelo melhor que houvesse em matéria de trelas extensíveis.
Isto foi o que a Dona Belarmina tinha como explicação aceitável, porque era incapaz de confessar que não tinha conseguido resistir à trela extensível que vira ser usada por uma sua amiga, a Dona Efigénia. A Dona Belarmina conhecia a Dona Efigénia desde os bancos da escola. E sobre as relações entre as duas não se pode dizer que fossem as melhores. Chegaram até a disputar o mesmo rapaz, com vantagem para a Dona Efigénia que o conseguiu conquistar e, por fim, casar. Embora aqui se deva dizer que a Dona Efigénia casou com ele, por temer que se o largasse a Belarmina o pudesse agarrar. Só descansou um pouco quando Belarmina casou com Paulino. Porém, Efigénia achava que a Belarmina, a invejosa Belarmina, nunca se esquecera dessa disputa. Havia, por isso, uma guerra antiga, um clima de guerra surda entre as duas. E quando a Efigénia apareceu no jardim com uma trela extensível, Belarmina nunca mais sossegou até descobrir onde se vendiam e acabar por comprar uma. Claro que tinha de ser a melhor. E a maior que havia. E a mais cara! Desconhecendo que uma encomenda destas vinda da República Popular da China poderia ser fatal. Como foi.
A trela extensível chegou passadas duas semanas, duas angustiantes semanas. Nesse dia, a seguir ao almoço, Dona Belarmina anunciou às amigas, fixando especialmente a Dona Efigénia, que ía ao fim da tarde à loja, ao estabelecimento «Aires – acessórios para animais de companhia e outros», buscar a trela extensível para o Piruças. «A trela extensível que veio da China?», perguntou uma das senhoras. Dona Belarmina confirmou, como se outra trela vinda de outro sítio do mundo, fosse inapropriada para o seu cãozinho. «Para o meu Piruças, só mesmo produtos da China! Da China mesmo de Xangai, não de uma loja dos trezentos!» As amigas concordaram, acenando com a cabeça. A Dona Efigénia fingiu que não tinha ouvido. A Dona Belarmina agarrou-lhe o braço: «Já sabe?... Vou buscar a trela extensível do Piruças! A trela chinesa!» A Dona Efigénia resmungou que já tinha ouvido, que ouvia bem, muito bem, que não era surda.
Piruças nunca tinha sentido no seu pescoço uma coleira e manifestou com rispidez a sua estranheza, nos primeiros dias.
Dona Belarmina fazia questão de lhe repetir, para que todos ouvissem:
«Bem, Piruças, é uma coleira e trela Su-zen La, feitas em Xangai! Nada de imitações, que gastei mais de 400 euros!»
E, segurando no Piruças, olhava à sua volta, observando o efeito das suas palavras. As amigas já as conheciam de cor e algumas já nem podiam ouvir os gritinhos esganiçados de Dona Belarmina, chamando o Piruças e elogiando as qualidades técnicas da trela extensível made in Xangai, adquirida na loja do senhor Aires.
Durante muitas tardes, o Piruças divertiu-se, apesar daquela situação estranha à volta do seu pescocito, mais do que era costume, utilizando a nova trela extensível. Mercê da sua extensibilidade enorme, Piruças podia deslocar-se cada vez mais longe, saindo do campo de visão da sua dona. Esta, contudo, estava descansada: no folheto de apresentação das coleiras e trelas Su-zen La, falava-se duma capacidade quase infinita, testada nos opositores do regime, nomeadamente no tempo do bando dos quatro.
«Bando dos quatro?», questionou a Dona Zeca, outra das amigas.
«Ora, deve ser uma matilha!... Ou uma raça nova... Uma raça chinesa... da China!», esclareceu a Dona Belarmina. E todas concordaram, acenando com a cabeça.
Todas as instruções estavam escritas em inglês, traduzindo os carateres chineses, em mandarim para ser mais preciso. Dona Belarmina compreendia muito mal o inglês e tudo aquilo lhe parecia muito estranho. Achava que aquilo da capacidade infinita era mera publicidade; já quanto ao facto de as trelas terem sido testadas nos opositores do regime maoísta, isso era-lhe completamente incompreensível. Mas bastava-lhe olhar para a alegria do seu Piruças brincando, para se desligar dos problemas de tradução do folheto de instruções da coleira extensível. Afinal, era esta a causa da mais recente boa disposição do seu fiel companheiro. Não era isso o mais importante? O regime maoísta só podia ser uma coisa boa.
Porém, um dia, o mais inesperado acabou por acontecer. Dona Belarmina, como era costume tinha jantado frugalmente. À noite bastava-lhe um prato de sopa, que, por vezes, partilhava com o Piruças. Nesse dia, Piruças recusou o resto da sopa da dona. E quando Dona Belarmina se instalou na salinha, diante da telenovela, o Piruças desatou a correr, primeiro às voltas na sala, depois percorrendo todas as divisões da sala. Dona Belarmina estranhou aquele comportamento e chegou a pensar que o seu cãozinho tinha comido alguma coisa que lhe tivesse feito mal. Só que o Piruças parecia cada vez mais desvairado, na sua corrida desenfreada. Em vão a dona o chamava. Piruças parecia desligado de tudo, apenas preocupado em correr cada vez mais depressa. Era como se não estivesse a correr por vontade própria, mas estivesse a ser puxado de forma violenta. Belarmina estava a ficar assustada e, apesar de estar agarrada à trela, segurando-a com toda a força que possuía, sentia que o seu cão ía sair de casa disparado, impelido por uma força estranha. Uma força centrífuga, o pior que pode haver, imaginava.
Até que, continuando a trela a desenrolar-se furiosamente, Dona Belarmina deixou de ver e ouvir o seu Piruças. Sabia já por experiência, que depois de muitos metros a trela, normalmente, estacava e já não se estendia mais. Contudo, sentia que algo de estranho se estava a passar. De facto, naquela noite, a trela não parou de esticar. Magicamente, parecia, finalmente, uma trela infinita, como anunciava a publicidade. E o cão nunca mais voltava. A noite avançava e o Piruças não regressava. A Dona Belarmina bem o procurou e chamou, mas nada. Até que resolveu suspender as buscas e voltou, mergulhada numa profunda tristeza, para o seu quarto, com a pega da coleira na mão. Ainda olhou para o pratinho onde o Piruças comia e os seus olhos não conseguiram reprimir as primeiras lágrimas dessa noite. Deitou-se e custou-lhe adormecer, a pensar por onde é que o seu cão andaria. Se estaria bem, se teria um sítio para dormir, se teria comido qualquer coisa. Na sua mesinha de cabeceira poisou, ao lado do copo com a placa, a pega da trela extensível. Tinha a certeza que acordaria se a trela se mexesse.
                No outro dia, mal acordou, caminhou para a cozinha, na esperança de que o seu cão tivesse voltado. Tinha-lhe deixado a porta aberta do quarto, com essa intenção. Chamou o Piruças, mas nada. Mas ficou surpresa quando viu que o comedouro estava vazio. O Piruças tinha lá estado durante a noite!
                Nos dias que se seguiram, custou-lhe muito sair à rua e enfrentar as perguntas das amigas que queriam saber do Piruças. Não era capaz de lhes contar a verdade, pelo que lhes foi dizendo que o pobrezinho estava doente, com uma arreliadora inflamação gástrica, doença que conhecia em pormenor por ter estado na origem do problema de saúde, mais grave, que lhe levou o marido. Efigénia pareceu desconfiar da explicação, mas Belarmina já não reparava nos olhares frios e acusadores da outra. A ausência do Piruças era mais que suficiente para lhe ocupar a alma, afogar-lhe qualquer outro sentimento.
                Durante várias noites, o comedouro foi sendo enchido e no outro dia estava vazio. Mas era em vão, que a Dona Belarmina tentava surpreender o cão, ou porque nunca chegava a vê-lo, ou porque adormecia antes da sua aparição, ou porque acontecia ele aparecer quando ela tinha que ir à casa de banho. Na noite que conseguiu, finalmente, ficar desperta completamente, muito à força de um café duplo que lhe deixou o coração a palpitar que esteve prestes a chamar por socorro, o Piruças não apareceu. E assim também aconteceu na noite seguinte, até que a Dona Belarmina desistiu de ficar acordada, emboscada numa cadeira ao lado do frigorífico, não fosse o Piruças deixar de se alimentar, devido à sua presença escondida.
                Essa mudança de estratégia não veio alterar nada. O Piruças parecia que já não conhecia o caminho de casa, o que não deixava de ser estranho, pois bastava seguir a coleira. A pega desta continuava poisada junto ao comedouro, como se fossem peças do passado, dum passado agora dolorosamente feliz.
Por fim, um dia, a Dona Belarmina, morta de saudades do seu Piruças, resolveu puxar com mais determinação, a trela extensível. Estava disposta a não parar enquanto não aparecesse o seu Piruças. Esteve assim durante horas, como se fosse um pescador a puxar a rede. Esperava ser compensada por abundante pescaria. Por essa razão, quando pensava que ía aparecer o seu Piruças, um pouco mais magro porque entretanto deixara de aparecer e comer todos os petiscos que a Dona Belarmina lhe arranjava, saltou-lhe na cozinha um canzarrão enorme que ladrou furioso e vendo que quase nada estava no comedouro, abriu a boca e, sem mastigar, engoliu a Dona Belarmina que, como que num mergulho perfeito de cabeça, desapareceu completamente no amplo buraco negro que era agora a bocarra do seu renovado Piruças.


Epílogo para quem pretenda discutir a duvidosa moralidade desta história
Todos lamentam, certamente, o triste desfecho da nossa história, o fim tão horrível como inesperado da Dona Belarmina. Só que a Dona Belarmina acabou por ser vítima de si mesma. Em primeiro lugar, vítima da inveja e duma necessidade perfeitamente repreensível de querer ter mais que as suas amigas. Dona Belarmina ficou roída de inveja quando viu que uma das suas amigas do jardim possuía uma trela extensível. É verdade que em matéria de inveja até os deuses tinham dificuldade em lhe resistir. Assim sendo, conseguiria não sucumbir uma pobre e solitária mortal? De qualquer modo, as coisas ficaram piores ao pretender a trela mais extensível que existisse no mercado. Ora, uma trela extensível, quase infinita, a roçar os vastos campos do deslumbramento, acabaria por criar no seu utilizador uma aparência de liberdade a que dificilmente se iria resistir. Quem pisasse os sedutores caminhos da liberdade, quem deambulasse pelas avenidas da liberdade, nunca mais seria o mesmo! Era pouco provável que, passada essa experiência, quisesse voltar a sentir essa aparência de vida, essa ilusão anestesiante, essa existência amputada. Finalmente, e como na altura certa sublinhámos, não era um pormenor desprezível o facto de a coleira extensível ter sido fabricada na República Popular da China. Ora, essas trelas extensíveis faziam parte duma manifestação planeada de propaganda do regime. Estas trelas extensíveis, quase infinitas, eram aplicadas aos opositores do regime que se encontravam detidos. Concretamente, o regime aplicava estas coleiras e trelas extensíveis em substituição do encarceramento formal. Os presos políticos podiam optar por estas trelas e fazer uma vida quase normal, pois não tinham que ficar no interior da cela duma prisão. Voltavam para as suas casas, para o convívio com as suas famílias, regressavam aos seus locais de trabalho. Alguns, puderam voltar para a Universidade onde davam aulas, antes de serem detidos e julgados ou para o jornal onde escreviam. Claro que sempre usando a trela extensível do regime. Mas como as trelas eram quase infinitamente extensíveis, alguns presos chegaram a ir ao estrangeiro e aí participar em manifestações contra o regime chinês, dar conferências e entrevistas. Só não podiam retirar as coleiras. Com efeito, tal era impossível devido a um sistema de fecho eletrónico associado a um chip que emitia um sinal identificando a situação e comunicando-o para o posto de polícia mais próximo.
Porém, as trelas permitiam criar essa aparência de liberdade verdadeiramente aliciante para os opositores do regime chinês, tal como serviam as intenções de propaganda do regime perante os governos ocidentais, simulando uma espécie de abertura democrática que era apenas a medida da coleira.
É impressionante o que podia fazer uma trela extensível quase infinita. Por isso, vários estudiosos das áreas da politologia, da sociologia e da filosofia política dedicaram-se ao estudo dos efeitos destas coleiras e trelas nas atitudes e comportamentos dos presos políticos. E, das muitas conclusões, as mais significativas apontaram para o surgimento no utilizador destas trelas extensíveis, dum poderoso desejo de liberdade que se transformava numa vontade de libertação e de eliminação do opressor. Estas conclusões não acompanhavam as embalagens das coleiras e trelas extensíveis Su-zen La, quase infinitas, recebidas no estabelecimento «Aires – acessórios para animais de companhia e outros». Nem o senhor Aires, o dono, suspeitava desta qualidade fascinante a acompanhar um inocente acessório para cãezinhos. Quem pega numa coleira e numa trela apenas pensa em prender o animal. Nunca suspeita que também o podem libertar. Lamentavelmente para os mais incautos. É que a verdadeira liberdade foi a que se libertou também de si mesma.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

A biblioteca da alma


A sua relação com a Biblioteca estava para além dos livros. E para além da leitura desses livros. Bem, os livros também estavam para além da leitura. Quer dizer, os livros estavam para lá de si mesmos. Eram objetos físicos e ele achava que, na sua materialidade própria, desenhavam um mundo. Um mundo mais consistente do que aquele que as leituras proporcionavam. A sua Biblioteca, no último andar da casa, era o seu mundo, o átrio do seu mundo. Fisicamente falando, também. Nem era um pequeno mundo, como metaforicamente se poderia dizer, ou um mundo concetualmente falando. À medida que foi adquirindo cada vez mais livros, elevou novas estantes que isolavam aquela ampla sala do resto da casa. Da casa e dos que nela habitavam. Aos poucos e poucos, por entre inesperadas estantes e periclitantes pilhas de livros de equilíbrio duvidoso, tornava-se o acesso cada vez mais labiríntico e mais inacessível aos outros, aos não-iniciados. Novas zonas de interesse faziam nascer novas paredes artificias e irradiar novos atalhos. Sentia-se muito bem ali. Gostava de passar por entre os livros, olhar para eles e recordar as circunstâncias em que os adquirira ou os lera. A propósito de cada um havia sempre um conjunto de acontecimentos que povoavam a sua vida. Aos poucos foi-se apercebendo que a história escrita dos livros que trazia para casa tinha menos a ver com o livro e as indicações que sabia acerca dele, e mais com um cenário ou um acontecimento que laboriosamente construía à sua volta ou o acaso fizera irromper. Por isso, também não os arrumava por autor ou géneros, mas apenas os ía arrumando segundo a ordem cronológica com que íam surgindo na sua vida e na biblioteca. Quando passeava por entre os livros, revia a sua vida, os acontecimentos e os momentos que rodeavam a sua aquisição. Deambular pela biblioteca era revisitar a sua vida, a sua história.
Rodeava, por isso, a aquisição dos livros com momentos singulares de prazer. Um jantar especial, uma ida ao teatro, um pensamento curioso que lhe ocorrera. Sempre que ía à ópera comprava um livro. Ou vários, tudo dependendo do modo como o espetáculo decorrera. Havia uma relação de proporcionalidade direta entre o agrado do desempenho dos cantores líricos e o número de livros que trazia para casa. Preferia os romances americanos em particular, a literatura anglo-saxónica em geral, especialmente de autores que viveram em ex-colónias do Império Britânico. Agradava-lhe alguma mentalidade colonial mal disfarçada. E os sentimentos contraditórios que se revelavam em quem, progressista e liberal, assistia à derrocada dos impérios e dos seus valores. Porque ele, quando passeava pela cidade, também sentia dessa maneira, como se a cidade tivesse sido invadida por hordas de bárbaros que anunciavam novos e terríveis tempos. Mas não se interessava apenas pela ficção. Comprava alguma poesia. E nas noites chuvosas de inverno deliciava-se com biografias e livros de viagens. Quando reparava nesses livros, muito mais tarde, conseguia lembrar-se perfeitamente da hora tardia a que se deitara e da intensidade daquela chuva naquela noite. Cada livro reconstituía, deste modo, uma constelação de emoções, um momento no percurso da vida do homem, instantes que se dilatavam.
Passava a maior parte do tempo na sua Biblioteca. Um número cada vez maior de horas passadas naquela fortaleza de livros, impedia-o de estar com a família. Mas isso acontecera progressivamente. À medida que a sua biblioteca crescia fisicamente, que as paredes de livros íam fechando o espaço, o seu coração tornava-se mais frio em relação aos que com ele habitavam a sua casa. Encontravam-se às horas das refeições, mas isso ía acontecendo cada vez menos vezes. Frequentemente, comia uma sopa sentado à secretária, enquanto, ao mesmo tempo, deliciado, desfolhava um antigo livro de gravuras da Polinésia, uma raridade do século XVIII, editado pela Sociedade Geográfica de Londres. Ou então, ficava por um chá, um reconfortante chá, e dormia uma horita recostado num enorme cadeirão de couro que ocupava uma exata posição central na Biblioteca. O chá bastava-lhe para a tarde toda.
Quando saía à noite, fazia-o sozinho. Não tinha amigos e talvez fosse possível falar aqui de uma certa auto-suficiência arrogante. Apenas duas vezes por mês saía com a sua mulher. Íam a um restaurante italiano, invariavelmente pediam o mesmo. Ou melhor, já não pediam, o que lhes diminuía o tempo de espera, os empregados, ao fim destes anos, já sabiam o que o casal ía querer. No princípio, os empregados, simpaticamente, ainda se atreveram com algumas sugestões alternativas, mas acabaram por desistir. Aliás, essas sugestões foram sempre recebidas de uma forma muito desagradável. Um olhar reprovador, a ausência de uma única palavra, surtiram rápido efeito. Ele não queria, de modo nenhum, alterar aquela rotina, conseguindo, desse modo, diminuir o efeito perturbador que tinham essas saídas forçadas. A Biblioteca proporcionava-lhe uma incrível e bastante serenidade, como se sentisse como um imperador desse mundo onde reinava a sós com a sua memória. E fora do seu mundo sentia-se perdido, desorientado num espaço para o qual nada contribuíra, que encontrara já feito, que obedecia a lógicas que lhe eram completamente estranhas. Nessa espessura nada encontrava que o reconduzisse a si mesmo. Ele não se revia no mundo exterior à sua Biblioteca, nada ali fora lhe iluminava a memória ou dizia algo sobre si próprio. E isso cansava-o, como se o mundo, ali à sua frente, lhe fizesse um constante apelo à busca de um sentido que ele nem sabia muito bem o que poderia ser. Além disso, bastava-se a si mesmo quando passeava na Biblioteca. A Biblioteca tinha uma luz própria, um cheiro próprio que se desprendia dos livros aparentemente adormecidos. Nada podia substituir o aroma aconchegante dos livros. E a forma como amaciavam a luz. E como, adiantando-se o dia, se revelavam contínuas sombras projetadas pela luz de uma mansarda, avançando geometricamente, avançando e recuando, num bailado rigoroso mas lento.
A Biblioteca acontecera pela sua própria mão. E por isso ela o devolvia a si mesmo. E ele revia-se nas suas formas, pois era o seu tempo, o local onde, recolhido, se reapossava de si mesmo. E à medida que a Biblioteca crescia, mais ela o aproximava de si mesmo, como se a evolução física da Biblioteca, reconstruísse a retrospetiva da sua história. E, avançando no futuro, adornasse mais fielmente o passado. Afinal, os livros eram os maiores acontecimentos da sua vida ou a eles estavam ligados. Por isso, a história que contava cada um dos livros ficava aquém da história que a eles se ligava como um pedaço de si mesmo.
Adquiria livros todos os dias. E eles acabavam por se arrumar de acordo com o desfile desses dias. No início dispunha os livros tematicamente até que se apercebeu que, sendo tão forte a sua ligação aos livros, seria mais fiel se ele os fosse arrumando pela ordem com que íam surgindo na sua vida e na Biblioteca. Seguia, portanto, um critério cronológico ou, dito de outro modo, afetivo. E quando passeava junto dos livros assim ordenados tinha a nítidas sensação de que ía percorrendo o tempo que passou pela sua existência. A viagem por entre os livros era uma viagem pelo tempo, pela sua memória. E quando se demorava diante de uma secção determinada era como se o tempo parasse e tudo ficasse concentrado naquele instante.
E havia alguns anos particularmente intensos da sua vida que se refletiam quer na quantidade quer no tipo de livros que trouxera de casa. Um desses anos, em que pensara abandonar a vida académica, caracterizou-se pela leitura exaustiva de livros sobre jardins, jardinagem e Wittgenstein.
No ano em que conheceu Paula, sua aluna na faculdade onde ensinava, alterou completamente o tipo de livros que habitualmente comprava e lia. À sua paixão súbita e intensa pela rapariga correspondeu a leitura exaustiva de alguns poetas gregos clássicos e contemporâneos. Aqui, a obsessão por Constantin Kavafis e por tudo o que dizia respeito a esse poeta e a Alexandria foi particularmente notória. Também se interessou por poetas japoneses. E foi nessa altura que releu toda a obra de Jorge Luís Borges. Releu, comprando novas edições, pois era-lhe insuportável a memória que estava associada aos livros de Borges que já se encontravam na Biblioteca. Estranhamente, sentiu que, quando pegou nessas edições, tudo isso afetava a sua relação com Paula.
Paula também comungava do interesse do homem por livros. E foi assim que começaram a sair juntos, a visitar Bibliotecas, exposições e frequentar livrarias e alfarrabistas. Dessas vezes, o homem fazia questão de oferecer livros a Paula. Esta aceitava pois tratava-se de algo que, também para ela, era essencial. E o homem ficava feliz. Era uma felicidade nova, que nunca lhe tinha acontecido. Essas peregrinações conjuntas fizeram aumentar a paixão entre ambos. Simultaneamente, a sua mulher começou a desconfiar dos novos hábitos do homem. Passava mais tempo fora de casa. E a partir do momento em que começou a frequentar a casa de Paula, que vivia sozinha, começou a chegar tarde a casa. Progressivamente, o homem começou a deixar livros em casa de Paula. Os que comprava quando saía com ela e, passado algum tempo, os que trazia da sua Biblioteca e lhe emprestava. Fazia-o de uma forma que era para si muito estranha. Porque lhe custava muito emprestar livros. Ou melhor, muito raramente os emprestava. Os seus livros eram a sua história e não gostava de se desfazer, mesmo que durante algum tempo, de parcelas da sua vida. Mas fazia-lhe bem essa transação. De certo modo, aprendia novas formas de estar. E reconhecia que Paula também sabia cuidar dos livros. Um dia, quando Paula pretendeu devolver-lhe alguns livros que entretanto já lera, o homem achou que não tinha sentido levar os livros de volta. O facto de terem sido lidos pela rapariga, atribuía-lhes um significado que faria com que ficassem desajustados na sua Biblioteca. Aí, recusou levá-los. Ambos sorriram, pensando no resultado e significado dessa atitude. Era uma decisão histórica, cujo alcance em toda a sua real dimensão, não era ainda completamente percetível. No entanto, o homem sentiu um estremecimento interior no momento em que Paula aceitava os livros de volta e tornava a colocá-los na sua estante.
Continuando nesta curiosa transação, o homem deu consigo a reparar que a sua Biblioteca começava a registar algumas clareiras, algumas prateleiras registavam a falta de alguns livros. Porém, o homem não deixava de sorrir quando notava esses espaços vazios, sem livros, porque de certa forma comemoravam a sua nova relação, a sua nova paixão.
Das poucas vezes que a sua mulher vinha à Biblioteca também notou que faltavam algumas filas de livros. Sentindo-se curiosa em saber se essas falhas progrediam e aumentavam, pelo que começou a aparecer mais vezes, mesmo na ausência do marido. E não pôde deixar de se sentir preocupada. Ao que parece, foi aí, perante algumas estantes vazias, progressivamente esvaziadas, que começou a desconfiar da nova situação do marido. Estalaram algumas discussões, nomeadamente, quando a esposa reparou que os livros que faltavam eram, na sua maioria, pequenos livros, romances breves, muita poesia, excessiva poesia, e alguns livros de pintura, permanecendo inalteráveis as seções relativas a enciclopédias e dicionários, bem como os romances históricos, muito em voga nos anos oitenta. Ela concluiu rapidamente que era possível que o marido estivesse a viver uma situação nova, algo que nunca lhe acontecera. Uma paixão amorosa?, admitiu a custo. Por isso mesmo, interrogou o marido sobre a ausência prolongada de alguns livros. O homem apressou-se a inventar uma desculpa qualquer relacionada com o trabalho na Faculdade, mas a mulher achou que se tratava de uma desculpa muito mal elaborada, a despachar, quando esperava dele um discurso mais estruturado e fundamentado. A esposa achou que aquela desculpa tão elementar e prosaica não estava de acordo com a estrutura mental do companheiro que ela sempre conhecera. Para ela, aquela justificação pindérica não podia deixar de constituir um aviso subliminar. E que o marido, tão pouco atreito a mudanças, estava diferente. Como a biblioteca. A sua preciosa e reservada biblioteca.
As discussões não ficaram por aí. Se existia alguma nova mulher na vida dele, era a pergunta mais insistente. Uma pergunta tipicamente feminina. Mas o homem respondeu-lhe que a sua vida eram apenas os livros e que isso bastava-lhe muito bem. A mulher não sentiu qualquer vacilação na resposta do marido, apesar de saber que estava a atingir o coração do seu relacionamento, que estava a pôr em causa a franqueza e a lealdade do companheiro de há mais de vinte anos. Qualquer homem, mesmo o mais farsante, seria incapaz de deixar escapar um mínimo sinal. Uma qualquer tremura na voz, uma ligeira alteração da respiração, um músculo facial descompassado, a desconfortável posição das mãos, tudo isso, qualquer coisa de tudo isso, poderia escapar ao controlo do seu autor. A mulher, escrutinadora, não notou nada, porque nada havia a notar. O homem estava claramente convencido do que estava a dizer. Não se sentiu atraiçoado pelas palavras escolhidas. Achava que não estava a mentir. É que nem sequer se preocupava por encontrar uma mentira piedosa. Não. Apenas descrevia o que se passava, o que sempre se passara.
A sua vida estava de facto relacionada com os livros. Mas quando chegava a casa de Paula percebia que a realidade era outra. Foi-se habituando a reparar que quando lhe trazia livros para casa, para esta casa, estava a entregar-se, como nunca julgou que fosse possível fora das histórias dos livros. À medida que as pilhas dos livros íam crescendo nas diversas divisões da casa de Paula e se ía desbastando a sua primitiva Biblioteca, sentiu que a sua vida anterior ía perdendo sentido. Isso mesmo confessou à rapariga. Esta percebia tudo e sorriu. Amava-o. Amavam-se. Nesse momento e nesse lugar, o homem compreendeu que estava a construir uma nova Biblioteca.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Uma cigarra e um cigarro - uma história de amor moderno


                Fumar faz mal. Ninguém duvida. Amália, cigarra fadisteira, bem o sabia.  Mas conseguia ela, cigarra ainda adolescente, resistir a um cigarro bem enroladinho?
Amália, desde muito jovem, revelou dotes para o canto. Não foi preciso ir a nenhum concurso televisivo tipo «Chuva de Estrelas» ou «Já Cá Canta», para todos perceberem que o seu futuro estava ditado: cantava de uma forma encantadora e não estava longe o dia em que gravaria o seu primeiro cêdê. E, nas noites mais quentes de agosto, juntava-se toda a bicharada, todo o bicho careta das redondezas, para ouvir a sua voz de veludo. Velvet voice. Os pais de Amália cobravam os bilhetes e o negócio ía de vento em poupa. Contrataram depois um agente nortenho, de Famalicão, para gerir a sua carreira do ponto de vista artístico, (a parte do graveto continuava sob a alçada da família, era melhor) tratar dos contatos com o meio artístico, músicos mais a sério, tudo a pensar na gravação do cêdê e sua promoção junto dos media. De qualquer modo, a carreira de Amália estava a correr bem. A família acabou por se mudar para um duplex e começaram a passar férias na Praia dos Tomates.
                Foi aí que Amália conheceu a sua desgraça. No fim de um espectáculo em Vilamoura e quando se vestia no camarim, depois de mais uma noite de apoteose, aproximou-se dela um belo cigarro, muito bem vestido mas de aspeto estrangeiro. O seu sotaque não escondia a ascendência anglo-saxónica. «Fiquei apaixonada pela sua voz e não sairrei daqui enquanto não aceitarr o meu convita parra um passeio no meu iate que está fundeado na marrina.» O jovem cigarro esforçava-se por ser o mais galanteador possível, acompanhando com gestos delicados as palavras que proferia, embora com dificuldades para dominar a língua de Camões e Alfredo Marceneiro. A cigarrita olhou-o nos olhos, ajeitou o xaile negro que ainda lhe aconchegava os ombros, e respondeu-lhe já fascinada pelos modos do jovem. «Bem, com tanta insistência e retórica, quem sou eu para lhe dizer que não. Mas diga-me, pelo menos, o seu nome, já que teria de falar primeiro com os meus pais. Terei de pedir autorização ao senhor meu pai.» O cigarro pediu-lhe desculpa, mas não lhe podia, ainda, revelar a sua identidade. Tentava a todo o custo evitar os paparazzi e por isso, que lhe perdoasse, mas a fama também tem os seus inconvenientes, para além dos transtornos fiscais. Amália respondeu-lhe que ela, também a caminho da fama e sempre a contas com o fisco impiedoso, o compreendia muito bem e deixava essa coisa do nome para outra altura. Combinaram o passeio para o dia seguinte.
                Quando nessa noite chegou a casa, depois de ter feito o trajeto sempre calada, talvez ainda fascinada pelo encontro com o moço estrangeiro, Amália contou finalmente o que se passava, descrevendo aos pais o encontro daquela noite.
                O pai não achou muito conveniente o encontro e desafiou um rol de argumentos. «Afinal, és ainda uma jovem muito nova e inexperiente. Depois, sair de manhã, assim tão cedo, pode prejudicar-te a voz. As cigarras não andam no alto mar e isso por alguma razão. Finalmente, não se deve confiar em desconhecidos, muito menos estrangeiros. Se ele não te revelou o seu nome é porque é procurado pela Interpol.» A mãe também acrescentou coisas deste género, repetiu argumentos, apenas mais chorosa. Porém, nada demoveu a cigarra. A mãe soltou um choro desenfreado, como argumento final, mas Amália proferiu uma ameaça fulminante. «Se não me deixarem ir com o cigarro estrangeiro, nunca mais canto! Faço greve aos fados!» Ui, o que ela disse. Os pais calaram-se imediatamente. A mãe fungou, mas não disse nada. De maneira nenhuma queriam que a greve da filha saltasse para as primeiras páginas dos jornais. Isto para não falar na quebra dos rendimentos.
                No dia seguinte, Amália acordou bem cedo e vestiu-se da  forma que achava mais apropriada para um passeio de iate. Era a sua estreia em alto mar, devia estar vento. Estava nervosa e temia vir a enjoar. A mãe, esquecida da discussão da véspera, mostrava-se muito colaboradora, preparando o farnel. «Vão aqui uns rissóis. Ainda estão quentinhos.» A filha beijou a mãe. «Tens de convidá-lo para vir cá a nossa casa. Talvez jantar, não achas? Se tem um iate, deve ser de boas famílias.»
                No cais da marina, o cigarro já a esperava, com uma garrafa de champanhe à espera. A tripulação afadigava-se com os últimos preparativos. Amália olhava para tudo isto boquiaberta. Saltou para o interior do barco e zarparam da marina de Vilamoura. O cigarro mostrava-lhe as instalações. Amália estava fascinada. Sentia-se a viver um conto de fadas.
                Mas o encanto depressa se desvaneceu. Afinal, não estavam sozinhos como tinha sonhado durante a noite. O cigarro convidara também um grupinho de ruidosas cigarrilhas que, completamente nuas, apanhavam banhos de sol na popa do barco. Amália estava dececionada e não conseguiu esconder o seu embaraço quando o cigarro tentou apresentar-lhe as suas inesperadas colegas de passeio. «Não te prrecoupes. Elas ser muito simpáticas. Vais adorrarr.» Mas Amália não estava para aí virada. Ela era cigarra de um cigarro só. «Pensava que estávamos sós.» O cigarro soltou uma estridente gargalhada, no que foi acompanhado pelas suas amigas cigarrilhas. «Orra, orra. Não me conheces. Não penses que eu ser um cigarro perverso. Mas não dispenso uma boa cigarrilha depois de jantarr.» E nisto deu uma palmadinha nas nádegas duma cigarrilha que viera entretanto pendurar-se no pescoço do anfitrião. Amália queria chorar. «Afinal és como os outros. Só pensas em ti. No teu prazer. Um cigarro egoísta, é o que tu és!» Mas o cigarro não se deixou comover. Que um cigarro não tem coração, já toda a gente sabia. Que fazia mal ao coração, era o que estávamos a confirmar. A nossa cigarra abanou a cabeça, começando a fungar convulsivamente. Ela sentia uma enorme deceção e tristeza. O que começava a perceber era que tinha embarcado com um aventureiro, com um casanova. Até que, finalmente, o cigarro desvendou o seu mistério.
                «Estas cigarrilhas pertencem-me. Estão ao meu dispôrr. Como tu estarrás daqui a pouco, quando o sol se esconderr no horrizonte. E já agorra, regista então o meu nome. Sou amerricano e chamo-me Filipe Morris.» Amália quase desmaiou com a revelação. Estava diante do cigarro mais famosos e mais cobiçado do mundo! Filipe Morris, fosca-se!...
                A sua disposição alterou-se como do dia para a noite. Já mal podia esperar que o sol se escondesse no horizonte. Chegou mesmo a amaldiçoar a lentidão do movimento de rotação da Terra!... Que se lixasse o fado e os cigarros portugueses, que só faziam mal à saúde. Com o Filipe Morris ali pé? O Filipe Morris, ele mesmo, em pessoa?
                Já sentia um fogo que arde sem se ver. É que, para uma adolescente como ela, ele era o futuro assegurado. Mesmo com a  maldição dos cardiologistas, mas isso era obviamente inveja. E que se calassem os anémicos puristas! Filipe Morris? Aos meus pés? Ou vice-versa? Não!... Nada melhor ao fim do dia, quando o sol se esconder no horizonte, que um cigarro bem enroladinho.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Quando os teus olhos fecham é noite


De ti para mim o vento corre
Com os inacessíveis segredos
E as histórias onde percorre
O teu corpo os meus dedos.

Os ventos é que acedem
Por entre corredores à fortaleza do bem-amado
É a eles que os lábios pedem
A memória de cada centímetro esquadrinhado.

Estranho e máximo conhecimento
Em cada pêlo a sua marca
Aí se guarda em cada um a sua Babel
Cuja torre toda a história abarca.

Pelos teus olhos passa agora um laranjal
Reclamado pela m’nha sede
Pois seus frutos e carne me refrescam
As lembranças feitas duma rede
Para os peixes que no vento pescam.

E adormecem quando luzes soam
No pintado céu de papel
Peixes que no vento voam
Enganados p’lo mar da tua pele.