Fumar faz mal. Ninguém duvida. Amália, cigarra fadisteira,
bem o sabia. Mas conseguia ela, cigarra
ainda adolescente, resistir a um cigarro bem enroladinho?
Amália,
desde muito jovem, revelou dotes para o canto. Não foi preciso ir a nenhum
concurso televisivo tipo «Chuva de Estrelas» ou «Já Cá Canta», para todos
perceberem que o seu futuro estava ditado: cantava de uma forma encantadora e
não estava longe o dia em que gravaria o seu primeiro cêdê. E, nas noites mais
quentes de agosto, juntava-se toda a bicharada, todo o bicho careta das
redondezas, para ouvir a sua voz de veludo. Velvet voice. Os pais de Amália
cobravam os bilhetes e o negócio ía de vento em poupa. Contrataram depois um
agente nortenho, de Famalicão, para gerir a sua carreira do ponto de vista
artístico, (a parte do graveto continuava sob a alçada da família, era melhor)
tratar dos contatos com o meio artístico, músicos mais a sério, tudo a pensar
na gravação do cêdê e sua promoção junto dos media. De qualquer modo, a
carreira de Amália estava a correr bem. A família acabou por se mudar para um
duplex e começaram a passar férias na Praia dos Tomates.
Foi aí
que Amália conheceu a sua desgraça. No fim de um espectáculo em Vilamoura e
quando se vestia no camarim, depois de mais uma noite de apoteose, aproximou-se
dela um belo cigarro, muito bem vestido mas de aspeto estrangeiro. O seu
sotaque não escondia a ascendência anglo-saxónica. «Fiquei apaixonada pela sua voz e não sairrei
daqui enquanto não aceitarr o meu convita parra um passeio no meu iate que está fundeado na marrina.» O jovem cigarro esforçava-se
por ser o mais galanteador possível, acompanhando com gestos delicados as
palavras que proferia, embora com dificuldades para dominar a língua de Camões e
Alfredo Marceneiro. A cigarrita olhou-o nos olhos, ajeitou o xaile negro que
ainda lhe aconchegava os ombros, e respondeu-lhe já fascinada pelos modos do
jovem. «Bem, com tanta insistência e retórica, quem sou eu para lhe dizer que
não. Mas diga-me, pelo menos, o seu nome, já que teria de falar primeiro com os
meus pais. Terei de pedir autorização ao senhor meu pai.» O cigarro pediu-lhe
desculpa, mas não lhe podia, ainda, revelar a sua identidade. Tentava a todo o
custo evitar os paparazzi e por isso, que lhe perdoasse, mas a fama também tem
os seus inconvenientes, para além dos transtornos fiscais. Amália respondeu-lhe
que ela, também a caminho da fama e sempre a contas com o fisco impiedoso, o
compreendia muito bem e deixava essa coisa do nome para outra altura.
Combinaram o passeio para o dia seguinte.
Quando
nessa noite chegou a casa, depois de ter feito o trajeto sempre calada, talvez
ainda fascinada pelo encontro com o moço estrangeiro, Amália contou finalmente
o que se passava, descrevendo aos pais o encontro daquela noite.
O pai
não achou muito conveniente o encontro e desafiou um rol de argumentos.
«Afinal, és ainda uma jovem muito nova e inexperiente. Depois, sair de manhã,
assim tão cedo, pode prejudicar-te a voz. As cigarras não andam no alto mar e
isso por alguma razão. Finalmente, não se deve confiar em desconhecidos, muito
menos estrangeiros. Se ele não te revelou o seu nome é porque é procurado pela
Interpol.» A mãe também acrescentou coisas deste género, repetiu argumentos,
apenas mais chorosa. Porém, nada demoveu a cigarra. A mãe soltou um choro
desenfreado, como argumento final, mas Amália proferiu uma ameaça fulminante.
«Se não me deixarem ir com o cigarro estrangeiro, nunca mais canto! Faço greve
aos fados!» Ui, o que ela disse. Os pais calaram-se imediatamente. A mãe
fungou, mas não disse nada. De maneira nenhuma queriam que a greve da filha
saltasse para as primeiras páginas dos jornais. Isto para não falar na quebra
dos rendimentos.
No dia
seguinte, Amália acordou bem cedo e vestiu-se da forma que achava mais apropriada para um
passeio de iate. Era a sua estreia em alto mar, devia estar vento. Estava
nervosa e temia vir a enjoar. A mãe, esquecida da discussão da véspera,
mostrava-se muito colaboradora, preparando o farnel. «Vão aqui uns rissóis.
Ainda estão quentinhos.» A filha beijou a mãe. «Tens de convidá-lo para vir cá
a nossa casa. Talvez jantar, não achas? Se tem um iate, deve ser de boas
famílias.»
No cais
da marina, o cigarro já a esperava, com uma garrafa de champanhe à espera. A
tripulação afadigava-se com os últimos preparativos. Amália olhava para tudo
isto boquiaberta. Saltou para o interior do barco e zarparam da marina de
Vilamoura. O cigarro mostrava-lhe as instalações. Amália estava fascinada.
Sentia-se a viver um conto de fadas.
Mas o
encanto depressa se desvaneceu. Afinal, não estavam sozinhos como tinha sonhado
durante a noite. O cigarro convidara também um grupinho de ruidosas cigarrilhas
que, completamente nuas, apanhavam banhos de sol na popa do barco. Amália
estava dececionada e não conseguiu esconder o seu embaraço quando o cigarro
tentou apresentar-lhe as suas inesperadas colegas de passeio. «Não te prrecoupes. Elas ser muito simpáticas.
Vais adorrarr.» Mas Amália não estava
para aí virada. Ela era cigarra de um cigarro só. «Pensava que estávamos sós.»
O cigarro soltou uma estridente gargalhada, no que foi acompanhado pelas suas
amigas cigarrilhas. «Orra, orra. Não me conheces. Não penses que
eu ser um cigarro perverso. Mas não dispenso uma boa cigarrilha depois de jantarr.» E nisto deu uma palmadinha nas
nádegas duma cigarrilha que viera entretanto pendurar-se no pescoço do
anfitrião. Amália queria chorar. «Afinal és como os outros. Só pensas em ti. No
teu prazer. Um cigarro egoísta, é o que tu és!» Mas o cigarro não se deixou
comover. Que um cigarro não tem coração, já toda a gente sabia. Que fazia mal
ao coração, era o que estávamos a confirmar. A nossa cigarra abanou a cabeça,
começando a fungar convulsivamente. Ela sentia uma enorme deceção e tristeza. O
que começava a perceber era que tinha embarcado com um aventureiro, com um
casanova. Até que, finalmente, o cigarro desvendou o seu mistério.
«Estas
cigarrilhas pertencem-me. Estão ao meu dispôrr.
Como tu estarrás daqui a pouco,
quando o sol se esconderr no horrizonte. E já agorra, regista então o meu nome. Sou amerricano e chamo-me Filipe Morris.» Amália quase desmaiou com a
revelação. Estava diante do cigarro mais famosos e mais cobiçado do mundo! Filipe
Morris, fosca-se!...
A sua
disposição alterou-se como do dia para a noite. Já mal podia esperar que o sol
se escondesse no horizonte. Chegou mesmo a amaldiçoar a lentidão do movimento
de rotação da Terra!... Que se lixasse o fado e os cigarros portugueses, que só
faziam mal à saúde. Com o Filipe Morris ali pé? O Filipe Morris, ele mesmo, em
pessoa?
Já
sentia um fogo que arde sem se ver. É que, para uma adolescente como ela, ele
era o futuro assegurado. Mesmo com a
maldição dos cardiologistas, mas isso era obviamente inveja. E que se
calassem os anémicos puristas! Filipe Morris? Aos meus pés? Ou vice-versa?
Não!... Nada melhor ao fim do dia, quando o sol se esconder no horizonte, que
um cigarro bem enroladinho.
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