sábado, 22 de abril de 2017

Viver amigado ou sobre a amizade

Em casa dos meus pais, e devia estar prestes a entrar na escola primária, sem passar pelo jardim infantil, usava-se uma agora curiosa expressão para indicar que alguém, casado, tinha outra mulher: em vez de se dizer que “fulano tinha uma amante” dizia-se que “fulano tinha uma amiga” ou “fulano vivia amigado”. Isto, claro, valia também para o sexo oposto. A expressão não me levantava, nem levanta, problemas; sempre a achei tão natural e tão normal que só agora, muitos anos depois de ter deixado a escola primária, é que me vejo deliciosamente interpelado pela expressão. Deliciosamente interpelado porque é deliciosa a própria expressão. Numa altura em que o adultério receberia da sociedade um mais que intenso juízo de censura, via-se, no entanto, classificado com uma expressão carinhosa.
Com efeito, afinal, a amante é uma amiga[1]. Não só se presume que a esposa (enganada) não é nem uma amiga nem é a amiga, como a amiga é a outra. Podemos dizer que é uma amiga especial, malevolamente até poderíamos dizer que é uma amiga do peito. Mas, seja como for, ao afirmar-se que o marido adúltero tem uma amiga, estamos com isso a querer dizer que possui alguém onde pode encostar a cabeça ou antes a alma, alguém que possui um ombro (amigo) onde nos podemos apoiar, alguém em quem podemos confiar.
Viver amigado ou ter uma amiga era, afinal, próprio duma relação especial, algo de precioso nas relações humanas, no campo aconchegante da amizade. Tão importante e fundamental que, estamos certos, ninguém recusaria. Ou, afinal, quem é capaz de dizer que não a um bom amigo ou a uma boa amiga?
(da série As coisas e as palavras)




[1] O inverso não é verdadeiro. Não é verdade que uma amiga seja uma amante.

terça-feira, 11 de abril de 2017

Eu e o César Milán, o encantador de cães

Eu conheço pessoalmente o César Milan. Já estivemos juntos meia dúzia de vezes e vou contar-vos algumas coisas deste nosso longo relacionamento, inconfidências de que ele não se importará, quase de certeza. De facto, ele é, como muitos dizem, provavelmente com conhecimento apurado que lhes permite essa capacidade de despachar os outros duma penada, ele é mesmo, dizia, um curioso e um autodidata e percebe pouco de cães com problemas e ele próprio reconhece isso.
O César Milan, «el paquito» para os amigos e eu sou amigo dele como já disse, nunca gostou de cães. Em pequeno, na aldeia mexicana onde ele vivia, foi mordido por um chihuahua que lhe tentava disputar uns tacos que ele levava numa lancheira quando ía para a escola. O César avisou-o por várias vezes, "oh pá, vai dar uma volta", mas o canito estava mesmo focado nos tacos, que eram cozinhados por uma tia do Cesar, a tia Lurditas. Eu próprio cheguei, anos mais tarde, a provar dos tacos da tia Lurditas e compreendo perfeitamente que o chihuahua os disputasse ao «paquito» e o acabasse por lhe dar uma dentada na mão, que foi o que aconteceu. O César ficou com uma deformação nos dedos que o impede de escrever. Ora ele, desde muito cedo que queria ser escritor de livros de auto-ajuda, acabou por ver esse sonho desfeito devido a esse incidente com o cão. E, a partir daí, jurou que se ía vingar nos cães. E foi a partir desse momento que começou a congeminar esse diabólico plano. Um plano que conheço perfeitamente, mas que por razões óbvias não o posso revelar aqui. Até porque, a par duns esquimós que fazem equilibrismo e uns tipos que pertencem a um coro de música barroca de Florença, eu também lá tenho um papel, modesto, no desfecho final desse tal plano diabólico contra os cães e todos os donos de cães e que, pela sua magnitude e repercussões na vida dos seres humanos ao cima do planeta, pode-se comparar à última glaciação.  E, tal como eu conheço o César, o plano é mesmo para seguir em frente. Aliás, já está em execução.
Já por várias vezes lhe disse: "César, mas podias escrever os livros de auto-ajuda no computador, pois para teclar só precisas de dois dedos e mesmo para conceber os livros de auto-ajuda também só precisas de dois dedos de testa, porque não experimentas?". Ele fixa-me nos olhos com o seu olhar seráfico e responde-me invariavelmente: "Não, zé carlitos, ele trata-me assim, eu queria mesmo era escrever os livros com os dedos todos e por causa desse maldito cão, o chihuahua dos tacos da tia Lurditas, vou ter que reorganizar os meus planos para o futuro...».

Ele já me disse que gostava de conhecer Portugal e vir a Lisboa, mas era para vir cantar e fazer a primeira parte do espectáculo do Carlos Paião, no Coliseu. Eu já lhe respondi por várias vezes, "oh César, esse cantor já morreu", mas ele insiste, porque acha que se cantasse na 1ª parte, o Paião ía aparecer para fazer a 2ª parte. Enfim, ele é mexicano e possivelmente segue aquelas crenças indígenas com muita coca à mistura e se calhar vê e sabe coisas que a gente nem sonha. Nós somos amigos, mas não partilhamos as nossas crenças religiosas, porque como sabem eu sou pastor evangélico aos domingos à noite e não acredito nessas coisas de macumbas e reencarnações para fazer espectáculos no Coliseu. Bem, adiante! E, de facto, ele acabaou por não se dedicar aos livros de auto-ajuda, embora com a troca de correspondência que temos, já desse para fazer um bom livro e ir ao programa da manhã do Goucha. Digo do Goucha, porque o César, mesmo nos EUA onde vive, segue a TVI e os programas da manhã do Goucha e da Cristina. Quando não pode ver, grava. Quando não pode uma coisa, nem outra, pede-me para lhe fazer um resumo sobre o mais essencial e para lhe contar em pormenor as piadas do Goucha e da Cristina. É um fã incondicional e nós, portugueses, até devíamos ficar-lhe gratos por esse amor à pátria de Camões e não dizer mal dele, que é um encanto de pessoa, não desfazendo. Eu até já lhe perguntei se ele não queria ir lá ao programa do Goucha e da Cristina, que conseguia arranjar uma maneira, pois tenho lá um primo que trabalha na TVI, até fui ao casamento dele, casou com uma rapariga ucraniana, uma excelente rapariga e boa como o milho, se bem que na Ucrânia até não haja muito milho, e que mora num apartamento no Cacém, um terceiro andar sem elevador; pois esse meu primo informou-me que trabalha todos os dias na régie, "muito de perto" do realizador do programa, que é uma espécie de assistente de realização, mas eu acho que é tanga, ele não acabou o 12º ano, na volta o trabalho dele é só despejar os cinzeiros e ir buscar águas sem gás. Insisti com o César, que podia conhecer o Goucha ao vivo e dar um beijo à Cristina, que é até parecida com a mulher do meu primo, nessa coisa do milho. Mas não, nada feito. O César só aceitava ir ao programa para cantar e queria que eu o acompanhasse à viola e fizesse coros. Só que eu disse-lhe que não podia, que tinha uma reputação a defender. Obviamente, não lhe ía dizer que era a minha Filipa que não me deixava... 
(continua)

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Sobre o sofrimento de Jesus na cruz - "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" (Mateus 27:46)

Sempre me intrigou a interrogação de Jesus na cruz, aquando da terrível hora nona: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" (Mateus 27:46). Como era possível que Jesus, depois de toda a sua história, dos seus feitos, demonstrações públicas e afirmações, pudesse ter aquele momento de aparente fraqueza ou franqueza, aquela dúvida tão radical, admitindo que o Pai o tivesse abandonado? Como era possível não só admitir e pensar, como exprimir verbalmente, que o Pai desistira dele?
Aproveitando o apropriado período da Quaresma, reuni os meus apontamentos e, ainda sob uma forma provisória, e não será sempre definitivamente provisória, achei por bem divagar e registar essas minhas reflexões, eventualmente convocando à sua volta outras posições e outros discursos, ajudando-me a esclarecer aquele intrigante episódio.
Ora, essa pergunta começou a fazer mais sentido quando comecei a pensar no próprio sofrimento de Jesus. É que aquele sofrimento parecia não ser assim tão grande se Jesus sabia (ou não?) que não iria terminar a sua atuação pregado na cruz. Se soubesse antecipadamente que a sua história não iria acabar assim, com um desfecho fatal, seria que o sofrimento aparecer-lhe-ia mais atenuado? Pelo que, sem pôr em causa a dor e o sofrimento por que estava a passar e passou, eles seriam mitigados por saber que ao terceiro dia a situação acabaria por se resolver e toda a dor e sofrimento terminariam. Se Jesus sabia, entre tudo o que podia e já dera mostras, que tudo isto teria um desfecho favorável, será que podíamos considerar que essa expetativa de Jesus atenuaria o sofrimento? A limite, tudo poderia parecer um mero jogo: Jesus já sabia do seu regresso ao Pai no terceiro dia, o que sofria era mais aparência que efetiva realidade. Esta linha de raciocínio, parece-me, tem algum sentido, mas não sigamos este caminho cínico.
O que se passa quando Jesus formula a pergunta "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?", é que Jesus admite que o Pai o tivesse abandonado (o que é tão verdadeiro como ter admitido até aí que o Pai estava com ele...). Ora, se Jesus admite que o Pai o abandonou, admite também que Ele estava a falhar no Seu dever de amor e cuidado enquanto Pai. De facto, abandonar o filho naquele momento tão dramático... Como se pode admitir tal situação? Como pode o filho, aquele filho, admitir esse comportamento do Pai, daquele Pai?
Colocadas assim as questões, julgo que haveria demasiadas contradições suscitadas por aquela pergunta fatal... A pergunta de Jesus teria de ser interpretada doutra maneira.
Se se admitia que Jesus sabia antecipadamente que a sua situação se acabaria por resolver, porventura por saber que teria um estatuto divino, então a pergunta, exprimindo que se sente pela primeira vez abandonado e, portanto, entregue a si mesmo, então é nesse momento que Jesus se apercebe que a sua história poderá ter outro desenlace e que o passe milagroso do terceiro dia poderá não acontecer e que o seu fim derradeiro poderá ser outro, diferente do que previa ou estava estabelecido (ainda cinicamente: acordado). É com a pergunta "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" que Jesus prevê, ou permite que se preveja, que o seu fim não é mais diferente do fim que os outros homens experimentam. Ora, poderá estar aqui uma linha de interpretação extremamente atraente e rica de implicações.
É que, ao formular a pergunta, Jesus admite estar entregue a si próprio, de só poder contar, principalmente, consigo próprio, como um vulgar ser humano. Assim, é com aquela pergunta que Jesus assume a sua humanidade, aí reconhece ou percebe que pode ser apenas um homem, entre os homens, um crucificado entre outros crucificados (entre os ladrões).

É nesse singular momento que Jesus duvida ou reconhece não ter uma resposta. E, na dúvida, torna-se mais humano, mais finito, se assim se pode dizer. E, aqui, mais finito significa ser simplesmente finito, ver esgotar-se ali a sua vida que julgava cuidada pelo Pai. É nesse momento em que se julga abandonado, que a sua dor e sofrimento se tornam absolutos. Se houve uma dor mascarada, então foi nesse momento que caíu a máscara. E surge um rosto humano, demasiado humano. É nesse momento finalmente excessivo, que Jesus reuniu em si todas as dores de todos os homens, morrendo por nós. Sentindo-se abandonado pelo Pai, Jesus tornou-se, naquele momento único, mais irmão de todos os filhos.

sábado, 8 de abril de 2017

O melhor remédio





"Maquiavel tem razão: o melhor remédio para mitigar o aborrecimento, aligeirar o peso dos problemas e diminuir o receio da pobreza e o medo da morte é passar pelo menos quatro horas por dia em conversa com mestres do mundo da Filosofia e da Literatura. Como Sócrates diria mais positivamente, uma conversa séria é a melhor maneira de examinar a vida e de lhe dar sentido." (Rob Riemen, Nobreza de Espírito - um ideal esquecido, Lisboa, 2011, pp. 158)

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Caos

A minha cozinha estava num caos. É o que acontece, o que aconteceu, quando, ingenuamente, pretendemos explicar a Crítica da Razão Pura de Kant aos nossos cães.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Sobre a avaliação de trabalhos de Filosofia

Dou por concluída, na medida em que este processo possa ser concluído, a tarefa de avaliar e classificar  os vossos trabalhos. Mas nada nos/vos impede de aqui voltarmos para contestarem as classificações. Agradecia até que se manifestassem acerca disso. O processo de avaliar deve ser participado. Isto serve também para dizer que se chega aqui e não se está nunca satisfeito. Devíamos ter tido mais tempo, devíamos ser mais atentos, devemos procurar ser sempre mais justos e menos injustos. Mas também, mais felizes, porque isso até é o mais importante.
Por isso, por favor, digam o que vos vai na alma e desabafem. Estas notas são ainda propostas de classificações. Sinto-me melhor com o vosso desacordo manifesto do que sentir que algo não correu bem e ficou por dizer. Até porque nada existe que não possa ser corrigido. E não estaremos a ser melhores se não nos corrigirmos. 
De qualquer modo, ficamos com a sensação de que era bem melhor, nestes momentos, que isto fosse um vulgar teste de matemática (sem qualquer menosprezo para a matemática), e não existissem dúvidas nenhumas: tudo se resumisse a estar evidentemente certo ou errado. Só que não troco o definitivamente certo ou errado por aquilo que, ainda ou sempre duvidoso, nos faz pensar mais. Prefiro a fulgurância luminosa da dúvida à luz baça e mortiça.
Mas, como avaliar e confrontar trabalhos tão diferentes entre si, que são boas reflexões pessoais, assumidamente tão pessoais como sofridas, relatos autênticos e inconfessados ou inconfessáveis, face a outros que são manifestamente impessoais porque mais conceptuais e outros que se situam a meio duma coisa e outra? 
Afinal, que nota dão ao sabor das laranjas que comem? A nota máxima, porque são doces? Uma nota mediana, porque vos parece pouco doce ou porque podia ser mais doce? E se estiverem com a boca já doce e a laranja, também doce, vos parecer amarga? E se fosse mesmo amarga? Como descrevem e classificam esse sabor dessa única laranja? Que nota dão a esta manhã que está a nascer? E não devemos estar sempre a amanhecer, mesmo sabendo que a ave de Minerva, a da sabedoria, só levanta voo ao entardecer?