Em
casa dos meus pais, e devia estar prestes a entrar na escola primária, sem
passar pelo jardim infantil, usava-se uma agora curiosa expressão para indicar
que alguém, casado, tinha outra mulher: em vez de se dizer que “fulano tinha
uma amante” dizia-se que “fulano tinha uma amiga” ou “fulano vivia amigado”.
Isto, claro, valia também para o sexo oposto. A expressão não me levantava, nem
levanta, problemas; sempre a achei tão natural e tão normal que só agora,
muitos anos depois de ter deixado a escola primária, é que me vejo
deliciosamente interpelado pela expressão. Deliciosamente interpelado porque é
deliciosa a própria expressão. Numa altura em que o adultério receberia da
sociedade um mais que intenso juízo de censura, via-se, no entanto,
classificado com uma expressão carinhosa.
Com
efeito, afinal, a amante é uma amiga[1].
Não só se presume que a esposa (enganada) não é nem uma amiga nem é a amiga,
como a amiga é a outra. Podemos dizer
que é uma amiga especial, malevolamente até poderíamos dizer que é uma amiga do
peito. Mas, seja como for, ao afirmar-se que o marido adúltero tem uma amiga,
estamos com isso a querer dizer que possui alguém onde pode encostar a cabeça
ou antes a alma, alguém que possui um ombro (amigo) onde nos podemos apoiar,
alguém em quem podemos confiar.
Viver amigado ou ter uma amiga era, afinal, próprio duma relação especial, algo de precioso nas relações humanas, no campo aconchegante da amizade. Tão importante e fundamental que, estamos certos, ninguém recusaria. Ou, afinal, quem é capaz de dizer que não a um bom amigo ou a uma boa amiga?
(da série As coisas e as palavras)
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