
Aproveitando o apropriado período da Quaresma, reuni
os meus apontamentos e, ainda sob uma forma provisória, e não será sempre
definitivamente provisória, achei por bem divagar e registar essas minhas
reflexões, eventualmente convocando à sua volta outras posições e outros
discursos, ajudando-me a esclarecer aquele intrigante episódio.
Ora, essa pergunta começou a fazer mais sentido
quando comecei a pensar no próprio sofrimento de Jesus. É que aquele sofrimento
parecia não ser assim tão grande se Jesus sabia (ou não?) que não iria terminar
a sua atuação pregado na cruz. Se soubesse antecipadamente que a sua história
não iria acabar assim, com um desfecho fatal, seria que o sofrimento aparecer-lhe-ia
mais atenuado? Pelo que, sem pôr em causa a dor e o sofrimento por que estava a
passar e passou, eles seriam mitigados por saber que ao terceiro dia a
situação acabaria por se resolver e toda a dor e sofrimento terminariam. Se
Jesus sabia, entre tudo o que podia e já dera mostras, que tudo isto teria um
desfecho favorável, será que podíamos considerar que essa expetativa de Jesus
atenuaria o sofrimento? A limite, tudo poderia parecer um mero jogo: Jesus já sabia do seu regresso ao Pai no terceiro dia, o
que sofria era mais aparência que efetiva realidade. Esta linha de raciocínio,
parece-me, tem algum sentido, mas não sigamos este caminho cínico.
O que se passa quando Jesus formula a pergunta "Meu
Deus, meu Deus, porque me abandonaste?", é que Jesus admite que o Pai o
tivesse abandonado (o que é tão verdadeiro como ter admitido até aí que o Pai
estava com ele...). Ora, se Jesus admite que o Pai o abandonou, admite também
que Ele estava a falhar no Seu dever de amor e cuidado enquanto Pai. De facto,
abandonar o filho naquele momento tão dramático... Como se pode admitir tal
situação? Como pode o filho, aquele
filho, admitir esse comportamento do Pai, daquele
Pai?
Colocadas assim as questões, julgo que haveria demasiadas
contradições suscitadas por aquela pergunta fatal... A pergunta de Jesus teria
de ser interpretada doutra maneira.
Se se admitia que Jesus sabia antecipadamente que a
sua situação se acabaria por resolver, porventura por saber que teria um
estatuto divino, então a pergunta, exprimindo que se sente pela primeira vez
abandonado e, portanto, entregue a si mesmo, então é nesse momento que Jesus se
apercebe que a sua história poderá ter outro desenlace e que o passe milagroso
do terceiro dia poderá não acontecer e que o seu fim derradeiro poderá ser outro,
diferente do que previa ou estava estabelecido (ainda cinicamente: acordado). É
com a pergunta "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" que Jesus
prevê, ou permite que se preveja, que o seu fim não é mais diferente do fim que
os outros homens experimentam. Ora, poderá estar aqui uma linha de
interpretação extremamente atraente e rica de implicações.

É nesse singular momento que Jesus duvida ou reconhece
não ter uma resposta. E, na dúvida, torna-se mais humano, mais finito, se assim
se pode dizer. E, aqui, mais finito significa ser simplesmente finito, ver
esgotar-se ali a sua vida que julgava cuidada pelo Pai. É nesse momento em que
se julga abandonado, que a sua dor e sofrimento se tornam absolutos. Se houve
uma dor mascarada, então foi nesse momento que caíu a máscara. E surge um rosto
humano, demasiado humano. É nesse momento finalmente excessivo, que Jesus
reuniu em si todas as dores de todos os homens, morrendo por nós. Sentindo-se
abandonado pelo Pai, Jesus tornou-se, naquele momento único, mais irmão de
todos os filhos.
Que boa forma de olhar esta dúvida essencial.
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