domingo, 31 de dezembro de 2017

O que falta ler - planos para 2018, memórias de Churchill e outros tijolos

            Sempre entendi que, dadas as caraterísticas do nosso tempo que determinam um viver a grande
velocidade[1], de tal modo que não conseguimos acompanhar esse novo ritmo, tese defendida em 1970 pelo pensador norte-americano Alvin Tofler (1928-2016) em O Choque do Futuro, já não vivemos o tempo do grande romance realista. Isto é, o tempo livre de que dispomos, bem como a nossa disposição anímica para ler grandes romances, condicionam de tal modo a nossa maneira de ler que dificilmente nos conseguimos enquadrar no horizonte de receção dos romances realistas de finais do século XIX, Com efeito, será com alguma dificuldade que os nossos jovens adolescentes "suportarão", por exemplo, a demorada descrição ao longo de meia centena de páginas na edição de Os Maias da editora Livros do Brasil, do Ramalhete, o severo casarão que a família dos Maias passou a habitar em Lisboa, a partir do outono de 1875. Precisamos do tempo que teria uma ousada quanto pálida jovem mulher oriunda da burguesia urbana, no remanso da sua casa apalaçada, atentamente assistida por uma criada trigueira vinda da província. Precisamos desse tempo que (já) não possuímos. Não temos esse tempo, não somos desse tempo. Talvez nas férias os vá ler, pensava eu diante dos livros mais volumosos e que, carinhosamente, apelidamos de tijolos!
            Um desses tijolos eram as Memórias da Segunda Guerra Mundial de Winston S. Churchill que possuo numa edição brasileira da Editora Nova Fronteira. Edição que condensa as originais Memoirs of the Second World War que foram publicadas em 1948 e que valeram a Churchill, segundo o editor norte-americano, a atribuição do Prémio Nobel da Literatura. Contudo, o tijolo adormecido na minha biblioteca possui umas belas 1200 (mil e duzentas) páginas e condensam os seis volumes que constituíam a edição original!
            Mas sobre a dimensão da obra ainda não foi tudo dito. Nesta versão condensada surge-nos o excerto do prefácio onde confessava que aqueles seis volumes deviam ser considerados como "a continuação da narrativa da Primeira Guerra Mundial" e que assim abrangiam "uma exposição de outra Guerra dos Trinta Anos". A extraordinária dimensão das Memórias de Sir Winston Churchill levar-nos-ia, num primeiro relance, a julgar que Churchill apenas escrevia e assim ocupava todo o seu tempo. Mas não, como poucos saberão. De facto, Churchill foi um grande político, de extraordinária combatividade na oposição ou no governo, onde foi ministro e primeiro-ministro, intervindo ativamente nas duas guerras mundiais que ocorreram na primeira metade do século passado. Só que, além disso, também pintava, a óleo e aguarelas, completando mais de quinhentas telas, o que lhe valeu o direito a uma exposição individual na Diploma Gallery da Royal Academy, em 1959.
            Como explicar tamanha produção? O seu estranhíssimo horário[2] não explica tudo. E se o segredo está nas mil e duzentas páginas do tal tijolo adormecido, não será descoberto nas próximas férias dos próximos anos, pois já tenho previstos e agendados outros tijolos.
            Anotem-se alguns. A biografia de Mao, escrita por Jung Chang e Jon Halliday (Mao, Bertrand Editora, 855 pp.)[3] e a biografia de Hitler, de Ian Kershaw (Hitler, Publicações Dom Quixote, 849 pp.). Do fundamental Tony Judt, o seu Pós-Guerra - história da Europa desde 1945 (Ed. 70, 963 pp.), essencial para se compreender a outra Europa, a leste. Ainda no campo do ensaio, está na lista o importante estudo de Christopher Andrew e Vasili MItrokhine sobre as atividades do KGB na Europa e no Ocidente, O Arquivo Mitrokhine, com prefácio de José Pacheco Pereira (Publicações Dom Quixote, 972 pp.). A lista continua, pois no campo da ficção é ainda mais numerosa. Menciono apenas alguns. De Thomas Mann, A Montanha Mágica (Publicações Dom Quixote, 832 pp.); do escritor norte-americano John Frenzen, que esteve recentemente entre nós, o seu romance Liberdade (Publicações Dom Quixote, 684 pp.) e o romance 2666 do chileno precocemente desaparecido Roberto Bolaño (Quetzal Editora, 1030 pp.).
            E ficamos por aqui. A lista dos tijolos em fila de espera continua e só o seu registo parcial é angustiante. Se, inesperadamente, falecer entretanto, reclamo a reencarnação só para os poder ler. A reforma antecipada não me parece suficiente. De qualquer modo, espero derrubar alguns em 2018.



[1] Cf. Jean-Marc Salmon, Um Mundo a Grande Velocidade - a globalização, manual de instruções, Porto, Ambar, 2002, 220 pp.
[2] Sestas de várias horas, enfiando-se na cama a seguir ao almoço, de pijama vestido, e que lhe permitiam, depois, trabalhar toda a noite!
[3] Não esquecendo da mesma Jung Chang, o seu Cisnes Selvagens, eternamente recomeçado.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Depilição de depilação

Rapa-se a perna, o vil sovaco, a recôndita virilha
E assim fica a dama toda escanhoada
Abandonou a  pilosa armadilha
E onde era selva amazónica virou estrada.

A mulher burguesa quer-se bem rapada

De todo o embaraço ou percalço peludo
Onde há pêlo inóspito que fique nada
Onde há pêlo a despropósito rape-se tudo.

E a pele do pêlo por fim desembaraçada
Que era apesar a sua original condição
Acha-se agora a final mais apropriada
Para a pudorada e moralista visão.

Tímido, caprichoso, anti-sético (não cético)
Eis o sempiterno pensamento burguês:
Que não aceita a mulher como ela é
E quer ver bem retocada a nudez.


José Carlos S. de Almeida (2006-2017)

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Os charutos Monte Cristo ou o que pode a literatura

O que pode signficar um nome? Que histórias se escondem por detrás dum nome? Um nome banal ou inócuo como o dos charutos monte cristo, por exemplo. Atente-se nesta surpreendente história contada por Alberto Manguel em Uma História da Leitura (Lisboa, Ed. Presença, 2010 - 3ª ed., pp. 121 e ss.).
Em meados do século XIX, menos de 15% do operariado cubano não sabia ler. Saturnino Martínez, operário da indústria de charutos e poeta, publicava um jornal para os trabalhadores, La Aurora. Só que enfrentava o problema do analfabetismo. Lembrou-se, então, de criar um leitor público. Foi então junto do diretor do liceu de Guanabacoa propondo que a escola colaborasse na promoção da leitura em voz alta no local de trabalho. O diretor da escola dirigiu-se aos trabalhadores da fábrica de charutos El Figaro e convenceu-os da utilidade da iniciativa. Escolheu-se, então, um trabalhador que seria o leitor, o lector oficial, pago pelo seus restantes trabalhadores para lhes ler enquanto enrolavam os charutos, um trabalho mecânico e cansativo. Em 1866, o jornal La Aurora noticiava a leitura nas oficinas, levando os trabalhadores a familiarizarem-se com os livros, promovendo assim o conhecimento e a amizade. Com efeito, várias fábricas seguiram o exemplo. E foram tão bem sucedidas estas sessões públicas de leitura nos locais de trabalho que acabaram por ser consideradas subversivas.
O material destas leituras era escolhido previamente pelos trabalhadores e ía de panfletos políticos a romances e coletâneas de poesia. Mas tinham os seus favoritos. Entre eles, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Esta escolha tornou-se tão popular entre os operários enroladores de charutos que um grupo de trabalhadores escreveu ao autor, pedindo-lhe autorização para dar o nome do herói do seu romance a um dos seus charutos. Dumas consentiu e nasceram os «charutos Monte Cristo».

sábado, 16 de dezembro de 2017

O tempo de descobrir

Durante a nossa infância e adolescência, muitas das nossas descobertas mais inesquecíveis importantes, aparentemente, aconteceram nas nossas férias escolares. Aparentemente, deveria ser durante as aulas que isso devia ter acontecido. À partida, a escola seria o local e o tempo apropriados para cada um realizar as suas descobertas. Mas não. As nossas mais vitais descobertas ocorreriam, afinal, no período em que não estávamos diante dos professores. Parece um contra-senso, mas talvez não. Por várias razões. Primeiro, porque a escola de que guardamos memória, nomeadamente a escola primária durante a longa noite da nossa ingenuidade e mesmo a escola secundária depois, não eram espaços destinados a grande voos de criatividade, de estímulo à imaginação, de descoberta afinal. As descobertas eram servidas já descobertas e os passos da invenção deviam ser decorados; ninguém criava, criticava, pensava, descobria. Por outro lado, as descobertas mais essenciais, as que diziam respeito ao nosso corpo (à nossa identidade), à nossa capacidade de nos apaixonarmos depois da descoberta do outro, às nossas relações com os amigos e a descoberta da amizade, aconteciam fora da escola. As nossas inquietações mais estimulantes só podiam acontecer fora do espaço limitado da escola e da autoridade e no contacto com quem aparecia pela primeira vez, os amigos da rua, os primos, as meninas que estavam também de férias, fora do espaço vigilante e autoritário da escola, num ambiente de feliz disponibilidade e liberdade. Ora, esse ambiente festivo só podia ser o das férias escolares. Georges Steiner em Errata: revisões de uma vida (Ed. Relógio D'Água), relata-nos a sua descoberta durante umas férias em família no Tirol, tinha então perto de dez anos. Descreve-nos aí como, a partir dum livro sobre brasões de Salzburgo que um tio lhe leva, se entrega à sua descoberta durante uns dias chuvosos. É a partir desse livro que Steiner tem a intuição da singularidade, de que tudo é irremediavelmente diferente, da impossibilidade do mesmo, das "numerosas diversidades que nenhum esforço de classificação ou enumeração poderiam esgotar" (p. 11). A revelação da unicidade enfeitiçante e incomensurável, fascina-o e, ao mesmo tempo, aterroriza-o. Ora, esses sentimentos contraditórios estão sempre presentes numa descoberta serôdia. O que Steiner descreve magistralmente resume a essência da descoberta e a turbulência que acontece na alma do descobridor. Porém, esse vendaval estimulante só podia acontecer fora da escola e das aulas, do reino da repetição e da autoridade cinzenta do mesmo. Só fora desse espaço e desse tempo controlados e controladores seria possível optar por aquilo que Derrida designava como a intensidade de vida possível a cada momento. No momento em que suspendo as atividades letivas e entro numa espécie de curtas férias, recordo as minhas longas férias estivais ou aquelas que aconteciam de forma breve durante o Natal. Não tive nenhuma epifania como Steiner. Os meninos pobres aprendiam tudo na escola e descobriam na rua, no caminho a pé, para casa.



George Steiner, Errata: revisões de uma vida, Lisboa, Relógio D'Água, 224 pp.