sábado, 13 de janeiro de 2018

Sobre Auschwitz - uma leitura necessária

Não é um livro agradável, mas é um livro necessário. O livro Auschwitz - um dia de cada
vez (Lisboa, A Esfera dos Livros, 332 pp.) de Esther Mucznik, dirigente da Comunidade Israelita de Lisboa e estudiosa de questões judaicas, é de leitura obrigatória, no verdadeiro sentido da palavra[1]. Reconheço que, de vez em quando, regresso à leitura de obras sobre o Holocausto nazi, não porque sinta necessário reavivar-me a memória, mas porque tento, recorrentemente, perceber melhor o problema do mal, dos limites do mal, do que pode o homem fazer ao seu semelhante, praticando as formas mais cruéis de eliminar aquele nos olha nos olhos e onde no seu olhar nos devolve a imagem de nós próprios. Como é possível, humanamente possível, responder como o fez Wilfred von Oven, ajudante-de-campo de Goebbels, que ao convite para resumir numa só palavra a sua experiência do Terceiro Reich, respondeu que essa palavra seria... Paraíso![2] Ora, como se pode con-viver, viver ao lado das experiências mais horríveis exercidas sobre seres humanos indefesos? E, mais do que viver, viver no melhor dos mundos possíveis? É que o regime nazi levou a cabo um processo de massas no sentido da mais cruel desumanização que não se podia ignorar, apesar dos esforços da propaganda de apresentar campos modelo, como o gueto de Theresienstadt (pp. 153-172).
O choque logo à chegada do campo era, para os prisioneiros, muitos que até desconheciam o destino para o qual estavam a ser encaminhados, absoluto: "o aspeto sinistro das cercas de arame farpado, a visão diabólica das chamas a sair dos crematórios, o cheiro nauseabundo de carne e cabelos queimados, tudo isto acompanhado pela brutalidade com que eram recebidos, o afastamento violento e imediato dos familiares, o desconhecimento do que os aguardava, transformavam a chegada dos prisioneiros num pesadelo sem nome" (p. 87).
Os campos acolheram prisioneiros oriundos de muitos pontos da Europa, nem todos tratados da mesma maneira, criando-se uma espécie de hierarquia racial. Os polacos, os checos e os eslavos antecediam imediatamente os mais maltratados: os ciganos e os judeus (p. 93).
Ora, à medida que o conflito prosseguia pela Europa, era inegável o aproveitamento da mão-de-obra dos prisioneiros, contribuindo para a economia alemã implicada no esforço de guerra. Aliás,  foram numerosas as empresas alemãs a aproveitarem-se dessa mão-de-obra, empresas respeitáveis com que, hoje, nos cruzamos diariamente. Esse aproveitamento de natureza económica pode introduzir um laivo de racionalidade no holocausto. Como as experiências médicas. Mas não conseguem superar o sentimento de perplexidade perante a sua desumanidade monstruosa.
Por outro lado, a terrível experiência de Auschwitz prolongou-se para além do campo. Continua naqueles que sobreviveram. Muitos deles continuarão a viver com uma ferida interior que os corrói, com uma memória angustiante  ou um sentimento de culpa por ter sobrevivido. Como confessa uma das muitas sobreviventes e cujo testemunho vem reproduzido no livro: «Nunca se sai verdadeiramente do crematório» (p. 261).
Talvez esteja aqui uma das razões para não esquecermos Auschwitz e, pelo contrário, nos entregarmos à leitura de obras que vão retratando e dando a conhecer o que foi o terror nazi. É que, tal como a prisioneira, os crematórios não foram deixados para trás, como um artefacto duma arqueologia mais recente. A autora repete várias vezes: não basta a memória, é necessário e essencial o conhecimento da realidade nazi.
Até porque, sublinha Esther Mucznik, por vezes esquecemos a principal lição de Auschwitz: "A de como podem ser destrutivas as guerras nas nossas sociedades altamente evoluídas do ponto de vista científico, tecnológico e industrial". E os maiores massacres não aconteceram nos campos de batalha, "mas nos bastidores das administrações públicas e privadas" (p. 296). O nosso tempo é ainda um tempo onde o mal se vem manifestando sob formas mais dissimuladas: o conformismo, a indiferença, a cumplicidade perante a violência, o desenraizamento dos homens que regressa, os muros.
Como recorda Hannah Arendt, "as soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários, sob a forma de fortes tentações, que aparecerão onde pareça impossível aliviar a miséria política, social ou económica"[3].
Neste sentido, o significado político do totalitarismo que construiu Auschwitz, não morreu com Auschwitz. As fortes tentações totalitárias ainda inspiram a política dos nossos dias. Todos sabemos isso. E já achámos que seria impossível apoderarem-se do discurso político oficial. Só que a realidade, no seu dramatismo, está sempre à frente do que possamos pensar àcerca dela.





[1] Esther Muznik é também autora do livro Portugueses no Holocausto, editado entre nós, também, pela Esfera dos Livros.
[2] Cf. Lawrence Rees, Auschwitz - os nazis e a «solução final», Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005, 416 pp.
[3] Hannah Arendt cit. in Cristina Sanchéz, Arendt -a política em tempos obscuros, Lisboa, Cofina Media, 2015, p. 63.

sábado, 6 de janeiro de 2018

Os meus cães e os livros

A minha relação com os livros é uma relação não apenas intelectual, mas também física. Gosto dos livros na sua materialidade, gosto de lhes mexer, cheirar, apalpar. Gosto do colorido das capas, mas também de capas sóbrias. Gosto do livro composto e fico preocupado se surge algum rasgão na lombada ou se há folhas a descoserem-se. Gosto dos livros pelo que me dizem quando os leio, mas sobretudo gosto deles por aquilo que são: gosto do seu ser, amo-os pelo espaço que ocupam, pela forma com que se apresentam. Espalho-os pela casa, porque eles habitam comigo, unificam e dão sentido ao espaço, ligam os seus elementos, constroem uma totalidade habitável e acolhedora. São até respeitados pelos meus cães que sabem que não devem roer a mobília e muito menos aquela mobília especial.
Aprendi as primeiras letras ainda antes de entrar na escola, mas com a ajuda da minha vizinha do 2º andar que era professora. Pacientemente explicou-me, por exemplo, o escândalo da letra “H”, uma letra que não se lia, uma espécie de “zero” das letras. Quando então comecei a ler, comecei a frequentar a Biblioteca Pública da minha cidade, Caldas da Rainha. A partir do momento em que entrei na escola, aos seis anos, iniciei o meu processo de emancipação. Ninguém me levava à escola, nem ninguém aí me ía buscar. É verdade que nesse tempo a cidade era mais segura. Mas também éramos mais fortes, à custa de muita farinha Amparo. A Biblioteca ficava no parque e quando regressava da escola, “perdia” uma ou duas horas na biblioteca, nas suas salas de paredes forradas de livros, mal iluminadas, mas com um cheiro tão caraterístico entre o mofo e o suor e as folhas amarelecidas dos livros e dos jornais antigos de que tenho imensas saudades. Adorava estar na biblioteca, escolher livros para levar para casa, para me fazerem companhia na cama a seguir ao jantar.
Como já naquela altura era assim para o gordo (na altura, melhor, para o gordito), não ficava muitas vezes a jogar futebol. E se jogava, as minhas competências, absorvidas pela estatura anafada, empurravam-me para a baliza. Só não ficava a guarda-redes quando era o dono da bola, mas isso não acontecia muitas vezes. A minha inabilidade para o futebol foi determinante para o meu futuro: dedicar-me aos estudos, passar o tempo a ler e a escrever. Mais tarde, a minha inabilidade futebolística estendeu-se aos relacionamentos com as raparigas. Também aqui, optei por me dedicar à leitura, embora acrescentasse mais um motivo de interesse à biblioteca que continuava a frequentar: apareciam por lá raparigas bem bonitas por quem suspirava ainda mais que pelas aventuras dalguns dos heróis dos livros, se bem que estes acabassem sempre por ser bem sucedidos.
Na minha família ninguém tinha ido além da 4ª classe, que era o mínimo para tirar a carta de condução. Além disso, como o meu pai era padeiro e trabalhava à noite, tinha que dormir de dia. Tínhamos os horários desencontrados. Portanto, ía à biblioteca sozinho e escolhia os livros sozinho. Mas tinha um critério que se revelou decisivo e excelente: escolhia os livros em função das capas, dos desenhos das capas. Era verdade que quem vê capas não vê corações, mas desconhecia esse provérbio. Este critério gráfico também incluía outra fator de escolha: é que também era decisiva a existência de gravuras ao longo dos capítulos. Ora, tudo isto somado, empurrou-me para escolher os livros da Enid Blyton, os livrinhos da coleção Vampiro e Argonauta da Livros do Brasil, lindíssimas capas, muitas delas com desenhos da autoria do Mestre Lima de Freitas e Edmundo Muge, e ainda me levou a ler a obra de Julio Verne que possuía as gravuras da edição francesa do século XIX. Em resumo, o critério da capa acabou por me conduzir ao encontro de excelentes leituras e aventuras. O leitor que hoje sou é, assim, devedor em certa medida, da importância das capas dum livro. Essas capas fascinaram-me de tal maneira que ainda hoje, quando tenho um desses livros nas mãos e contemplo a sua capa, sou arrebatado por um feixe de sensações que associaria a uma experiência quase religiosa. E como me continuam a fascinar, continuo a adquirir alguns livros em função disso mesmo. Por exemplo, sempre que os encontro, adquiro os livrinhos policiais da coleção XIS da Editora Minerva ou da coleção Escaravelho de Ouro da Empresa Editorial Édipo.
A minha paixão pelos livros é mais intensa que a paixão pela leitura. Mesmo gostando muito de ler, parece-me que gosto tanto de ter um livro, quanto ler um livro. O meu instinto capitalista acompanha a minha condição de leitor. Por essa razão, um monte de livros é o que há de mais parecido com um tesouro, com um monte de objetos preciosos. Possuir um livro é o meu objetivo supremo; segurá-lo entre as mãos, afirmá-lo como minha propriedade, marcá-lo com a minha assinatura, saber que no dia seguinte ele ainda aí está à minha disposição. Por isso, nem pensar no formato digital do livro. Como poderia possuir um livro em formato digital? Imagino que me escorreria pelos dedos, que me escaparia pelas mãos, que ficaria a segurar coisa nenhuma!... Na minha casa existem três salas com livros na maioria das suas paredes, sendo que uma dessas salas, o meu escritório, é, afinal, o meu santuário. A desarrumação é quase absoluta, mas isso permite-me ir descobrindo livros por detrás das outras filas de livros ou grupos sucessivos de livros deitados, como se tivessem sido abatidos em combate. A descoberta de um livro já esquecido há muito tempo é celebrada por mim com o encanto própria dum encontro com alguém pela primeira vez. Vivo sucessivas ondas de renovada alegria e satisfação no meio da confusão plena dos livros. Só não danço, porque já não tenho espaço.
Gosto de livros, de muitos livros. À imaginada pergunta que livro único levaria para uma ilha deserta, respondo sempre: a Bíblia porque é o  Livro dos Livros, um livro que são muitos livros!...
Os livros, de facto, fazem-me muito feliz e não consigo imaginar a minha existência sem livros por perto. Não apenas pela leitura que possam proporcionar, porque para isso basta-me imaginar uma qualquer narrativa. Mas pelo afago com que me acarinham, pelo modo como se aconchegam naturalmente nas minhas mãos, pelas sensações boas que me despertam, pela sua doce entrega, com uma promessa de ficar a saber mais sobre o mundo que nos rodeia.
Sempre gostei do livro enquanto objeto. Têm uma funcionalidade única. Por exemplo, já utilizei um romance que detestava para matar moscas, revistas para equilibrar os pés das mesas. Agora foi a vez do Gipsy atacar os livros do escritório que nascem a partir do chão. Fui ver que livro roera e ao qual arrancara a lombada: também seguiu o meu critério. Era um livro sofrível. 
Algumas vez os livros digitais nos poderiam dar este escandaloso prazer? É por isso que eu acho que os meus livros, nesta vida partilhada que é a nossa, também começaram a amar os livros como eu.

Nota final: sobre leitura, livros e bibliotecas existem alguns livros que considero de referência e que me vão inspirando. Para ajudar o leitor, deixo aqui algumas indicações de livros sobre livros.
BÁEZ, Fernando, História universal da destruição dos livros, Lisboa, Texto, 2009, 448 pp.
BAYARD, Pierre, Como falar dos livros que não lemos?, Lisboa, Verso da Kapa, 2007, 156 pp.
BLOOM, Harold, O cânone ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2011, 588 pp.
BONNET, Jacques, Bibliotecas cheias de fantasmas, Lisboa, Quetzal, 2010, 163 pp.
MANGUEL, Alberto, Uma história da leitura, Lisboa, Ed. Presença, 1999, 368 pp.