segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Reflexões introdutórias sobre a (minha) morte e a (minha) liberdade


Deixo aqui, com pequenas alterações, um curto texto elaborado em 2008 sobre as questões da eutanásia e do suicídio assistido e que nessa altura mobilizavam a minha reflexão.


Já não sou um homem novo. Passei dos cinquenta e tenho consciência plena de que ultrapassei metade de um percurso, que se a nossa vida pode ser comparada com uma caminhada em direcção a um monte, sei que já fiz a parte do trajeto, a subida, e que agora é sempre a descer. E a descer é mais rápido, com todos os santos a ajudar. Ora quando penso no que o futuro me reserva ainda, sou por vezes assaltado com representações sobre a minha morte. Não é um pensamento frequente, mas não posso deixar de pensar nisso. Reconheço até que, mal assoma, trato imediatamente de o afastar. Nem todos adotam a atitude despreocupada de Epicuro que não temia a morte, porque enquanto vivíamos, a morte não existia e quando esta surgisse já tínhamos deixado de viver para nos preocuparmos com isso.
Mas nem sempre fomos mortais. Houve uma altura em que éramos imortais, pois a morte não existia, perante a intensidade da vida que se manifestava exuberantemente na nossa vida a correr. Felizmente ou infelizmente, esse tempo já passou. A partir de certa altura a morte surge-nos com mais insistência. Encontramos muitos dos nossos amigos em velórios, depois de termos passado uns anos a encontrá-los em casamentos e baptizados. É uma lei da vida que a vida termine um dia.
Aos poucos, a morte começou a impor-se. Porém, a vida sem a morte, sem essa compressão, era inviável. A pressão da morte intensifica os pequenos acontecimentos da nossa vida. Uma vida dilatada ao infinito era um convite a um apagamento do sentido, a uma diluição sem fim dos sentimentos, das emoções e dos afetos. Essa diluição tornaria a nossa vida demasiado flat, sem marcas e sem acontecimentos marcantes, uma calmaria descolorida, sem sabor, um ir sendo que seria mais um deixar andar. Pelo contrário, a consciência de que existe um fim, coloca os acontecimentos sob a possibilidade de não se virem a repetir e intensifica os momentos. A morte não vem apenas dar um sentido à vida; vem tornar a vida no próprio sentido. [vm]
Pensar a morte não é agradável. Quando ela irrompe no nosso quotidiano, somos assaltados por imagens pouco exaltantes. E no meio desses pensamentos lúgubres, aquilo que me assusta e assusta toda a gente é a ideia de uma morte dolorosa, antecedida por um longo período de sofrimento. Sofrimento para mim e para os que na altura me rodearem, que serão por certo aqueles que eu amo e aqueles que mais me amam.
Quando penso nisso, também penso no que poderia ser uma morte fácil, rápida e sem dor. Uma boa morte. Se possível, ocorrendo durante o sono, sem consciência da passagem para o outro lado ou depois duma despedida assumida e festejada. Essa morte doce pode acontecer por acaso. Mas hoje sei que também a posso desejar e planear e que em certos países do mundo e nomeadamente da Europa, perante situações de doença terminal ou de uma previsível situação que, por variadíssimas causas possa limitar assustadoramente uma vida digna, seja sob a forma de eutanásia ou de suicídio, assistidos por pessoal médico, é possível, desde que corresponda a um desejo expresso e persistente do doente ou dos seus representantes. Não é o caso do nosso país.
Em Portugal, aqueles que me ajudassem e colaborassem nesse processo, mesmo sob a forma de ajuda ao suicídio (suicídio assistido), respondendo ao meu pedido e agindo por sentimentos de compaixão e piedade, iriam incorrer na prática dum crime, pelo qual seriam julgados e, certamente, condenados. Mesmo que a opinião pública ou o pessoal de saúde o não julgassem desse modo. Um modo que, aplicando cegamente a lei, é a forma mais injusta de pretensamente exercer a justiça. No entanto, há sinais entre nós de que as coisas começam a mudar, do mesmo modo que também assistimos às primeiras manifestações daqueles que pretendem que tudo continue inalterado.
Porém, os problemas não ficam por aqui. É que quando chegar a altura não sei agora se serei capaz de tomar, então, a decisão de solicitar essa morte piedosa, uma morte que me leve durante um sono, uma morte indolor e doce, a eutanásia. O problema é que não posso saber hoje se amanhã serei capaz ou desejarei essa morte. Eu não sei agora o que se irá passar com a minha vontade em relação a um momento que ainda está para vir. Honestamente, não posso adiantar nada sobre a minha coragem, a minha fraqueza, o meu desespero num tempo que ainda desconheço, num tempo que ainda está para vir. Como também não sei agora o que, racionalmente, penso sobre o tema. Outra questão prende-se com a eventualidade de nessa altura me encontrar em coma e não conseguir manifestar a minha vontade e não a tendo expresso antes. E mesmo tendo manifestado a minha posição, estarão suficientemente seguros aqueles que me amam acerca da minha decisão, que a minha decisão ainda se mantém tal como a manifestei anteriormente? Estes são alguns dos problemas que uma decisão antecipada sobre a morte levanta. Porém, outras questões anteriores também se colocam, a saber, se me é permitido dispor da minha vida e, portanto, da minha morte. Trata-se duma decisão que está dentro da esfera das minhas faculdades? É uma decisão pessoal, defendem alguns. Mas é ainda uma decisão pessoal ou que se mantém na esfera íntima do indivíduo, quando para se concretizar terá que recorrer aos outros ou mesmo a instituições públicas?
O tempo da morte é sempre um tempo ainda a chegar. Era muito fácil começar a enumerar em abstracto tudo aquilo que um dia faria, tudo aquilo de que um dia seria capaz de fazer. Era muito fácil, mas não era honesto. O que sei, contudo, para já, é que me é insuportável pensar que alguém que eu não conheço e que nem me conhece, que possivelmente nunca me viu noutra ocasião, que desconhece completamente o que eu penso, o que eu sinto, o que eu fui e sou, possa decidir por mim numa matéria que só a mim, ou a mim juntamente com aqueles que eu amo e que me amam, diz respeito. O que eu sei desde já é que é incomportável e revoltante imaginar que alguém, precisamente quando me aproximo do fim, me possa condenar a uma pena de sofrimento prolongado e acrescentar à iminência da minha morte mais dores e sofrimento desnecessários. No momento em que me devia preparar para me despedir daqueles que amo, em que quereria preservar uma imagem apaziguante e um rosto de serenidade, porque é assim que eu quero ser recordado, alguém que não me conhece decidirá que eu devo estar submetido a dores incalculáveis que me absorverão por completo e me impedirão de viver os últimos dias da minha vida de acordo com os meus desejos. A legitimidade que possui para me tratar não lhe confere um poder absoluto para decidir sobre o que acha que é melhor para mim. Tal como os meus familiares não possuem esse poder se eu estiver em condições de pensar e decidir. Essa pessoa está a retirar-me a possibilidade de viver até ao fim como eu desejo, quando curiosamente me impede de me retirar de cena mais cedo. Essa pessoa aceita que seja ela a decidir e não aceita que eu decida? O que é insuportável é que um desconhecido possa decidir aplicar-me uma pena que eu nada fiz para merecer.
Em nome de quê pode alguém fazer-me sofrer e recusar a minha vontade? Neste momento, em Portugal, os médicos, os políticos e os legisladores, uns por acção e outros por omissão, decidem como é que eu e qualquer um que opte por morrer em Portugal, deverão terminar os seus dias; retiram ou aceitam que não esteja no âmbito da minha vontade decidir como e quando pretendo morrer — não faz parte do catálogo dos meus direitos fundamentais o direito a morrer. Confundem o direito à vida com a obrigação de viver. Obrigar-me a viver pode não ser o modo mais dignificante de defender o direito à vida.
Este curto artigo pretende ser um contributo para a discussão sobre a eutanásia e o suicídio assistido como formas de concretizar um direito que também pretendemos ver reconhecido — o direito a morrer. Porque pior do que discutir aquilo que poderá chocar os nossos valores é fingir que o problema não existe. Como se não se morresse em Portugal, como se as máquinas não tivessem que ser desligadas quando faltam as camas no hospital. Como se aqueles que têm dinheiro não pudessem ir ao estrangeiro morrer, como algumas senhoras mais endinheiradas íam abortar a Inglaterra sob o pretexto de irem às compras a Londres.

Aborto e eutanásia: questões ligadas, questões silenciadas
Com efeito, para o melhor e para o pior, para esclarecer ou para confundir, o que é certo é que as questões do aborto e as questões da eutanásia têm surgido ligadas. Embora se possa e se deva discutir a concepção ideológica e filosófica da vida que está subjacente às posições em debate, trata-se de decisões sobre a vida nos seus momentos extremos, cronológicos e ontológicos. Enquanto decisões e procedimentos que afetam a vida, compreende-se que possam surgir ligadas. Contudo, na ausência de um debate em Portugal sobre a eutanásia e o suicídio assistido, tem sentido que, após a discussão sobre o aborto, nos proponhamos fornecer elementos para reflectir sobre o fim da vida e as situações e decisões que lhe estão associadas. Aqueles que defenderam posições pró-aborto aparecem, na maioria das vezes, a defender a eutanásia e o suicídio assistido. De tal maneira as posições surgem associadas que apareceu como contraditório defender-se a interrupção voluntária da gravidez e atacar a eutanásia e o suicídio assistido, defender o fim de uma hipotética vida e colocar-se contra o fim de uma vida degradada[1].
            Noutros países, o debate sobre o aborto arrastou associado o debate sobre a eutanásia. Os adversários da interrupção voluntária da gravidez, esgrimindo a bandeira da defesa da vida, tentaram sempre avisar que, uma vez legalizado o aborto, seria a vez da eutanásia ser também legalizada. Na continuação dessa argumentação, os adversários da IVG vinham também agitar o perigo da ladeira escorregadia, isto é, que uma vez legalizadas ou despenalizadas aquelas práticas, entraríamos numa espiral inevitável de recurso maciço à IVG e à eutanásia. Ora, os números desmentem facilmente esse argumento, visto que não aconteceu nenhum aumento assustador de recurso à IVG e à eutanásia nos países em que houve alterações legislativas favoráveis à despenalização desses procedimentos. Contudo, associar aborto e eutanásia enquanto processos atentatórios da vida continua a ser uma prática recorrente, mesmo utilizando argumentos perfeitamente mistificadores.
            No início de 2007, no seu discurso de ano novo, o papa Bento XVI afirmou que a eutanásia e o aborto eram formas contemporâneas de terrorismo contra a vida, afirmação que foi secundada pelo chefe máximo da igreja católica portuguesa. Seriam formas de terrorismo na medida em que constituiriam atentados contra a vida. Ora, em primeiro lugar devem ser entendidas estas afirmações num contexto de luta ideológica e propagandística da Igreja contra os muitos movimentos de cidadãos e activistas dos direitos humanos que pretendem integrar os direitos à interrupção voluntária da gravidez e o direito à eutanásia e ao suicídio assistido no catálogo dos direitos humanos. Poderíamos também entender aquelas afirmações radicais do papa como efeito de um estilo pessoal, estilo que a propósito de outros assuntos, enfurece de vez em quando os adeptos do Islão. Seja um adorno pessoal ou uma mera figura de estilo no contexto de luta ideológica, o que é verdade é que aquela afirmação em nada contribui para um esclarecimento sereno e lúcido dos valores em causa, mas apenas os mistifica nos seus intuitos propagandísticos. Trata-se, de facto, de uma afirmação terrorista e não fica nada bem ao herdeiro de Pedro fazer afirmações que muito devem à Verdade. É que a misericórdia que motiva aqueles que recorrem à eutanásia ou o sofrimento que acompanha aqueles que praticam o aborto ou o suicídio nada tem a ver com o instinto assassino de um terrorista. Como é possível, então, equiparar a eutanásia e o aborto ao terrorismo? Porque desprezam a vida? Nada mais falso! Deveríamos antes perceber de que vida estamos a falar…

            Uma questão fundamental: decidir ou deixar que os outros decidam por nós?
O que pode ser considerado uma forma de terrorismo, em matéria de princípios de fé espiritual e de convicções pessoais, é retirar às pessoas alternativas que podem ser escolhidas no seu processo de vida. O que é censurável é retirar às pessoas a possibilidade de escolher e, assim, assumir a responsabilidade moral pelas suas palavras e actos. Recorrer à interrupção da gravidez ou decidir-se por um procedimento eutanásico devem constituir práticas a que cada um, no exercício consciente da sua liberdade, deve poder assumir. Pelo contrário, estigmatizar aquelas práticas condenando-as do ponto de vista moral e religioso e ainda penal é uma forma de exercício terrorista de redução da liberdade humana, quando é enquanto ser livre, decidindo o seu trajecto de vida, que consagramos a única forma de o homem assumir responsavelmente a sua condição e as suas opções. Ronald Dworkin, professor americano da Universidade de Nova Iorque na área da filosofia do direito e da filosofia política, designa como uma questão crítica de natureza político-constitucional a de saber se a sociedade (ou o legislador fundamental, diríamos nós) opta pela coerção ou pela responsabilidade em relação aos cidadãos. Ora, para nós, estamos diante de uma questão crítica fundamental: a de saber se devemos impor um caminho impedindo legalmente uma ou várias soluções ou permitimos que, pela despenalização dos procedimentos eutanásicos, cada um possa decidir o caminho que quer seguir, responsabilizando-se pelas opções que tomar. Uma sociedade democrática adulta e evoluída é aquela que, em matérias do foro da consciência individual e que pertencem ao nicho de intimidade de cada um, não impõe uma resposta e uma conduta, manipulando as consciências, mas antes deixa que cada um possa decidir de acordo com as suas convicções e valores próprios. Uma democracia evoluída não ousa estabelecer à partida quais são os caminhos que cada um deve seguir em matérias do foro pessoal; uma democracia evoluída não é aquela que se apresenta com as soluções, mas antes estabelece os vários caminhos que conduzem às soluções, aos consensos e mesmo aos erros, permitindo que os cidadãos ensaiem as soluções que escolhem a partir do espaço público da discussão. O fundamental é que existam vários caminhos. Afinal, críticos de governos de partido único querem impor caminhos de único sentido? Dworkin fala-nos duma questão crítica político-constitucional que será a de ter que decidir perante as opções que uma ’sociedade decente’ tem diante de si, isto é, ter que decidir sobre se “irá optar pela coerção ou pela responsabilidade, se tentará impor a todos os seus membros um juízo colectivo sobre assuntos do mais profundo carácter espiritual, ou se irá permitir e pedir a seus cidadãos que formulem, por si mesmos, os juízos mais crucialmente definidores da sua personalidade naquilo que diz respeito a suas próprias vidas.”[2] Para lá do confronto de valores que lhe subjaz, trata-se duma questão política de fundo que deverá ser acautelada constitucionalmente. O problema da eutanásia e do suicídio assistido também passará por aí, como teremos oportunidade de ver, partindo duma reflexão sobre os direitos do homem.
Não podemos, portanto, deixar de pensar no enquadramento político do problema. Aqui, o silêncio dos políticos não é de ouro. Enquanto nalguns países a questão é debatida em termos que se estendem à sociedade civil, existem outros países onde tal debate não acontece e mesmo os tímidos afloramentos do tema são feitos em condições em que os seus autores não pretendem grande ressonância mediática. Porquê esta cortina de silêncio, quando os jornalistas ou a classe política, por exemplo, são capazes, em princípio, de agarrar todos os temas e dar-lhes uma repercussão mediática? É evidente que se trata de uma questão fraturante, provocando divisões no tecido social ou fazendo com que essas divisões adormecidas possam tornar-se mais evidentes. Porém, uma sociedade que se pretende moderna e evoluída não deve evitar as questões mais radicais. Não há aqui soluções consensuais, nem sequer existe consenso no modo de colocar o problema. Trata-se, pois, de um problema e de uma solução que acabarão por dividir a sociedade. Pode-se pensar que este tipo escaldante de questões não seja do agrado dos políticos: o problema e as respostas podem rebentar-lhe nas mãos ou, pior do que isso, podem rebentar-lhe as mãos. Os políticos temem, naturalmente, perder votos e a propósito deste assunto poderão sempre afirmar, demagogicamente, que existem problemas mais urgentes. Contudo, todos os inquéritos realizados, quer junto da população, quer junto da classe médica e de enfermagem, revela que existe uma clara maioria de inquiridos a favor da despenalização da eutanásia, maioria que é menos expressiva quando se trata de pronunciar a favor da legalização da eutanásia activa. E percebe-se que assim seja, pois a solução despenalizadora é mais suave que a solução legalizadora.
Por outro lado, a descrição de situações concretas feita pelos media resulta sempre mais favoravelmente para os partidários da eutanásia que para os seus opositores. O drama dum doente tetraplégico ou o sofrimento dum doente em fase terminal é rapidamente amplificado pelos media e conduz facilmente a uma tomada de posição emocional ou emocionada favorável a uma solução misericordiosa que ponha um fim à desumanidade intolerável.
Portanto, apesar de ser uma questão dita fraturante, não dividirá o eleitorado exactamente ao meio. O político que se preocupe mais com as tendências do eleitorado do que com as suas próprias convicções, facilmente poderá desenvolver um discurso cativante, a limite demagógico, colocando os eleitores do seu lado. No entanto, nem assim o debate acontece e não acreditamos que isso se deva ao simples facto de termos políticos tão escrupulosos que não sejam capazes de discutir um tema correndo o risco de serem acusados de correrem atrás do ouro. Porém, entre nós, começam a surgir vozes do lado da classe política que afloram o tema e a necessidade de o parlamento ter que vir a tomar uma qualquer posição, aceitando que é necessário modificar a situação que se vive.

A hipocrisia: rabo escondido com o gato de fora
A hipocrisia classifica um comportamento que tenta negar, jurando a pés juntos, uma realidade que toda a gente sabe que existe, apesar de, oficialmente, se negar a sua existência. É qualquer coisa como tapar o sol com a peneira, sendo que quem usa a peneira serve-se duma falsa linguagem moralista e bem-intencionada para fazer crer que o Sol não existe. Ora, tal como a propósito do aborto e do debate sobre o aborto entre nós [e no estrangeiro], também a questão da eutanásia e do suicídio assistido está coberta com o manto vergonhoso da hipocrisia que consiste em fingir que o problema não existe, quando, de facto, “na prática hospitalar a eutanásia indirecta é um facto consumado”[3]. Não podemos ocultar ou virar as costas ao problema que resulta duma situação silenciada de se praticar a eutanásia diariamente nos nossos hospitais, mesmo duma forma indirecta.
 Até aos anos 80, em França, prevalecia uma verdade oficial que tentava tapar o sol: que nunca foi praticada nenhuma forma de eutanásia, nem activa, nem passiva, nem consentida, nem imposta, nem directa, nem indirecta. Era esta a situação decretada oficialmente. Era a verdade oficial. Era o gato de fora com o rabo escondido. Até que…
Em Portugal, a situação deverá ser semelhante. O debate sobre a eutanásia não se fez até agora porque o ambiente também está contaminado por este comportamento hipócrita. Apesar da lei penal, a eutanásia e o suicídio assistido existem e praticam-se de forma discreta, mesmo em Portugal. Aliás, entre nós, com a escassez de recursos no sector hospitalar e da saúde, haverá sempre alguém incumbido de desligar a máquina, por esta ser precisa para um doente urgente acabado de chegar. Imagine-se a situação seguinte: um doente em fase terminal e com uma doença irreversível está ligado a uma máquina de suporte vital. Só esta máquina é que o mantém ligado à vida, de outra forma morreria. Entretanto, chega um doente urgente, com hipóteses de sobreviver e recuperar alguma qualidade de vida, embora, no imediato, necessite de ser ligado à máquina. Só existe aquela máquina. Que fazer? O que imaginam que se tem feito? Desculpamo-nos com a empregada de limpeza que teve de desligar a máquina para ligar o aspirador? Deixamos morrer o doente que tinha hipóteses, mas que chegou atrasado ao hospital? Estamos, portanto, a lidar com uma realidade que não podemos ignorar ou que só poderemos ignorar de uma forma hipócrita.
Por exemplo, nos serviços de reanimação, onde a maioria dos doentes num hospital acabam por falecer, o pessoal médico tem que muitas vezes decidir pela limitação ou suspensão dos tratamentos, parar a ventilação artificial ou suspender o tratamento que permite ao músculo cardíaco funcionar. Os médicos tomam uma decisão quando concluem que já não há nada a fazer e o doente, inconsciente, já não poderá despertar do seu coma profundo e irreversível. Trata-se de uma prática corrente de eutanásia passiva.
Para as autoridades ministeriais e/ou hospitalares não se pratica a eutanásia. Mais, existe um horror oficial e uma condenação veemente em relação a tal prática. Mas, tal como em relação às bruxas, o que é verdade é que a máquina se desliga, até porque os recursos são escassos, o que em Portugal é ainda mais evidente. Portanto, se a máquina se tem de desligar para admitir mais doentes, como se pode dizer que não existe eutanásia em Portugal? Não se pode considerar que não existe só porque ainda não saltou para as páginas dos jornais ou para os noticiários das televisões. Ou porque alguém diz que não existe. Existir ou não existir não depende da vontade ou duma declaração oficial.
            A hipocrisia é tanto mais visível quando o argumentário contra a eutanásia é servido já requentado. Com efeito, este debate é a repetição de outros que já ocorreram no passado: por exemplo, a propósito do uso da pílula e da contracepção e da interrupção voluntária da gravidez. A luta pela eutanásia é uma luta repetida. Em França, a propósito da eutanásia, reacenderam-se os mesmos argumentos, esgrimiram-se as mesmas forças e intervieram os mesmos actores que nos debates a propósito da contracepção e da interrupção voluntária da gravidez. Apesar de largamente praticadas, também estas práticas eram condenadas, em nome dos mesmos princípios morais e valores fundados no carácter sagrado da vida. A Igreja e a Ordem dos Médicos, tal como na discussão sobre a eutanásia, classificaram como bárbaros os que estavam a favor e anunciaram consequências catastróficas no caso de aprovação das outras teses. Mas se o debate da eutanásia se assemelhou aí a um “remake de filmes já vistos”[4], talvez se possa então antecipar o seu desfecho: é que, apesar da oposição daquela sagrada aliança, a legislação a favor da contracepção e a despenalização da interrupção voluntária da gravidez acabaram por vencer sem terem ocorrido as consequências catastróficas e imorais que eram agitadas.
Na falta de legislação e regulamentação tudo fica nas mãos dos médicos e do pessoal de enfermagem. A falta de regulamentação, que decorre também da falta de coragem para regulamentar, permite a arbitrariedade, faz com que o destino dos pacientes fique dependente das convicções pessoais do pessoal médico. Quando chegar a minha vez, se não for conhecida a minha vontade ou, sendo conhecida, não for ou não puder ser respeitada e continuarmos sem legislação nesta área, tudo vai depender da formação moral do médico que me calhar. Os meus últimos dias estão dependentes do acaso!... Estamos, de facto, diante de um vazio jurídico, que será preenchido por decisões casuísticas. Mas a hipocrisia também se manifesta por aí: legislar seria abrir um processo de debate e discussão públicas. Ora, isso é o que precisamente se pretende evitar, preferindo-se, em alternativa, convocar à volta da questão, um conjunto de slogans moralistas, que apelam à emoção muito mais o que à reflexão. É preciso sair do vazio jurídico não para proibir e punir, mas para enquadrar as práticas discretas e ilegais que já existem, proteger as decisões solitárias daqueles que cedem (ou cederam) aos pedidos veementes e pungentes dos familiares e dos doentes desesperançados e submetidos ao sofrimento sem sentido. Práticas que precisam se de ser reguladas para serem criados critérios e requisitos a serem observados para que os procedimentos saiam da clandestinidade e do acaso e ocorram nas melhores condições sanitárias, respeitando os direitos do paciente e dos seus familiares.

Debater o problema e pôr fim à hipocrisia
Temos assistido na Europa e nos Estados Unidos a um debate constante sobre a maneira de morrer (eutanásia e suicídio assistido), um debate que envolve questões médicas, filosóficas, jurídicas e políticas, e também psicológicas e culturais. Esse debate assume picos de intensidade quando alguns doentes, muitas vezes em fase terminal, em estado de coma irreversível ou paraplégicos, ou os seus familiares, reclamam a eutanásia e essa situação salta para os meios de comunicação. Em Portugal, estranhamente, não há notícia entre nós de alguém ter reclamado a eutanásia para si. Embora ninguém duvide que existam doentes em fase terminal atravessando profundo sofrimento ou em coma vegetativo persistente ou em situação de desesperante paraplegia. Entre nós o silêncio é pesado, interrompido por pontuais declarações e publicações. Contudo, é preciso não esquecer que nos inserimos num espaço europeu onde esse debate existe, as organizações proliferam e as legislações nacionais vão sendo alteradas. No nosso país, algumas organizações da área da bioética vão introduzindo alguns assuntos relacionados com a eutanásia e o suicídio assistido. Como também anunciam a sua intenção de vir a propor algumas iniciativas no campo legislativo. No entanto, outras organizações e personalidades preferem optar pelo silêncio. Todos reconhecem que se trata de uma questão complexa com óbvios custos políticos para quem atirar a primeira pedra.
            Há, no entanto, que evitar e ultrapassar a hipocrisia que rodeia e encobre o problema. Várias vozes começam a manifestar-se e a tomar posição sobre o tema. Para já, propondo a legalização do testamento vital, como foi o caso da Associação Portuguesa de Bioética. Ou anunciando o propósito de apresentar uma proposta no âmbito da despenalização da eutanásia e do suicídio assistido. Do lado dos que se opõem também se notam os primeiros sinais de incómodo por se falar nisso, empunhando, como sempre, a bandeira da defesa da vida, da qual se lembram de desfraldar nestes momentos mais radicais, enrolada que estava no fundo da dispensa desde a última manifestação. Os políticos, sabiamente, adiam a tomada de posição. Mas sabem que não se pode adiar sine die e que, também a propósito deste problema, estamos na Europa.
Quanto a nós, pretendemos avançar com um modesto contributo para um debate que acabará, inevitavelmente, por acontecer. Avançar com este contributo para uma discussão na esperança de que os conceitos e os argumentos se clarifiquem e se consolidem e mobilizem os cidadãos para tomar partido. Uma exigência que começamos por colocar a nós próprios já que também sentimos essa necessidade por razões de ciência e de respeito no âmbito duma ética da discussão e de animação do espaço público, como factores de enriquecimento da nossa democracia e para as melhorias das condições de vida de cada um.
Este debate, em Portugal, finalmente, já existe, não lhe escaparemos. Afinal, há, neste momento, quem sofra e se debata consigo mesmo sobre o que fazer.
José Carlos S. de Almeida, 2008-2020



[1] “Porquê, num certo sentido, este paradoxo, dois pesos e duas medidas? Porquê proteger a vida de um acamado ou de um polideficiente que só deseja morrer, que suplica que o ajudem, mais do que aquela outra, intacta, maravilhosamente nova e misteriosa de um embrião, que mais não pediria — se pudesse pedir algo — que viver?”, André COMTE-SPONVILLE, «Amar a vida até ao fim», in HOUZIAUX (dir.), Deve a eutanásia ser legalizada?, Porto, Campo das Letras, pp. 24
[2] DWORKIN, Ronald, Domínio da Vida – aborto, eutanásia e liberdades individuais, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 305.

[3] CASADO GONZALEZ, Maria, La eutanásia: aspectos éticos y jurídicos, p. 38.
[4] CLOSETS, François de, La Dernière Liberté, Paris, Fayard, 2001, p. 183

sábado, 8 de fevereiro de 2020

A vocação imperial da Alemanha segundo Guilherme II

Aos fins-de-semana volto aos livros quase esquecidos durante a semana. Retomei, assim, a leitura da fantástica obra de Christopher Clark, professor de História Contemporânea da Universidade de Cambridge, Os Sonâmbulos - como a Europa entrou em Guerra em 1914 e que Niall Ferguson classifica como a melhor narrativa "sobre o que terá sido o maior erro coletivo na história das relações internacionais"[1] . Ora, lá para o meio, deparo com a personalidade desbocada do imperador alemão Guilherme II.
Ora, normalmente, associamos as pretensões expansionistas da Alemanha a Hitler e ao regime nazi. ´Porém, parece que o projeto, mesmo formulado episodicamente e em termos delirantes e jocosos, já começara com Guilherme II. Com efeito, o Kaiser, nos finais da década de 1890, considerou entusiasticamente um projeto de criação de uma "Nova Alemanha" (Neudeutschland) no Brasil. Em 1899, informou Cecil Rhodes da sua intenção de transformar a "Mesopotâmia" numa colónia alemã. No ano seguinte, durante a Guerra dos Boxers, defende o envio dum corpo do exército para a China, na perspetiva duma repartição posterior do país. Em 1903 declarava novamente que a América Latina era o seu alvo! E insistia com os responsáveis do almirantado na preparação de planos para uma invasão de Cuba, Porto Rico e Nova Iorque!
Ao que parece, atribuía-se a Guilherme II uma "imprudente falta de tento na língua" (p. 209), algumas das suas intervenções eram de mau gosto e deslocadas. A história, de facto, repete-se. Repetiu-se. Agora, estamos na fase da tragédia.


[1] Christopher Clark, Os Sonâmbulos - como a Europa entrou em Guerra em 1914, Lisboa, Relógio D'Água, 2014, 682 pp.