quinta-feira, 4 de maio de 2017

Gipsy, um pequeno cão e o liberalismo político

Gipsy veio parar à nossa matilha, depois de sofrer maus tratos no bairro onde a Filipa dava aulas. Trata-se dum pequeno cão, arraçado de pinscher miniatura. Era um cão que nunca seria previsível que viéssemos a adotar. No entanto, a sua persistência em aparecer todos os dias na escola da minha mulher, entrando na sala de aulas, onde se deitava num canto adormecendo e só saindo para o intervalo, acompanhando os alunos que brincavam com ele como também lhe davam pontapés, tornou-o num cão especial e a precisar de sair urgentemente daquele bairro, já que vivia na rua onde era um sério candidato a ser atropelado. Além disso, viver na rua, sujeito ao frio e à chuva, aumentava ainda mais a sua fragilidade.
Quando veio para nossa casa, rapidamente conquistou o nosso amor, começando a relacionar-se perfeitamente com o Gorki e o Gaudí. Rapidamente aumentou de peso e enternecia-nos o modo como se aninhava no sofá e adormecia: eram as primeiras noites dormidas com conforto e em segurança.
Na mesma altura, apresentava aos meus alunos as propostas ético-políticas de John Rawls (1921-2002), concretamente, aquelas que o filósofo norte-americano defendera na sua principal obra, Uma Teoria da Justiça. Segundo aquele professor de filosofia política da Universidade de Harvard, a liberdade e o direito à liberdade não podem ser diminuídos em nome da obtenção de qualquer forma de bem-estar.
Segundo Rawls, a liberdade (como a justiça) não entra no cálculo dos interesses sociais. A história do século XX está cheia de exemplos de projetos políticos em que as liberdades dos cidadãos foram sacrificadas em nome duma mais justa distribuição dos rendimentos e dum mais igual acesso a vários bens sociais.
Foi nesse momento que a situação do Gipsy resvalou para o centro das minhas preocupações. É que o Gipsy vivia naquele bairro em absoluta liberdade. Não tinha dono, nem coleira, nem horários, nem obedecia a qualquer ordem. Quando veio para a nossa casa, começou, pela primeira vez ao fim do seu ano e pouco de vida, a usar uma coleira. Quando o passeávamos, ía ao lado dos outros e seguia as orientações dos seus donos. Subitamente, a partir da minha reflexão e das minhas aulas sobre Rawls, surgiu uma questão incomodativa: seria que o Gipsy não preferiria a sua vida anterior, em plena liberdade, a ter regras, um espaço limitado e irmãos com que partilhar e limitar o seu instinto? Se ele pudesse escolher, teria optado pela liberdade e recusado a segurança e o bem-estar?
lguns dos meus alunos, confrontados com esta questão, responderam que o amor que ele recebia agora compensava a perda de liberdade. O amor... Os meus adolescentes alunos ainda são capazes dessa generosa resposta. Por outro lado, também era verdade que o comportamento do Gipsy, no dia-a-dia, parecia revelar um constante agradecimento. Mas isso podia ser um efeito do nosso olhar, a nossa boa consciência a aliviar a nossa preocupação, a legitimar as nossas decisões.

Não sei ainda como responder seguramente àquelas perguntas. O pequeno Gipsy conseguiu levar-me a uma questão fundamental da filosofia política. De certeza que também me vai levar a procurar outras alternativas ao liberalismo político de Rawls.
(Da série Os meus cães e eu)

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