sábado, 13 de maio de 2017

O arquivo morto

Os portugueses usam uma expressão interessante quando se referem a alguém que, continuando ligado à empresa ou instituição, passou a não exercer nenhuma tarefa, ficando o dia todo quieto a um canto, esquecido. Diz-se, nesse caso, que foi posto na prateleira. Nas escolas, quando algum professor era vítima de doença que o limitava no exercício das suas funções, deixava de poder lidar com os alunos. A sua incapacidade fazia com que não pudesse continuar a dar aulas sem, no entanto, passar à situação de aposentação por invalidez. Nestes casos, a direcção da escola costumava retirar-lhe as turmas, embora o que se passasse, efetivamente, é que ele é que era retirado às turmas. Este professor correria o risco de ir parar à prateleira, não fosse a direcção das escolas ter a luminosa ideia de o colocar na biblioteca da escola. Na grande maioria das escolas era esta a saída para o problema. Uma solução para o infausto professor, não para a biblioteca. Esta podia ganhar pouco com este novo colaborador, mas a "solução" também revelava o entendimento muito difundido sobre o papel das bibliotecas escolares. O professor estava incapacitado, mas como se partia do princípio que ninguém ía à biblioteca e que o professor que aí estivesse fica sossegadinho e apenas se limitava a bocejar e a vigiar o voo dos livros, então a biblioteca podia ser esse lugar de exílio. Ou melhor, atendendo ao caráter "terapêutico" do desfecho, podia encarar-se a estadia na biblioteca como uma ida para as termas.
Mas estes procedimentos não aconteciam apenas com docentes que apresentassem uma situação clínica que desaconselhava a continuação da atividade docente e, por isso, íam parar à biblioteca.

Em 2010, aconteceu o caso duma jovem professora de Mirandela que posou nua para a Playboy. O escândalo, imediata e amplamente divulgado na imprensa e nas redes sociais, exigiu uma rápida resposta da administração educativa. Com efeito, foram-lhe retiradas as turmas e, deste modo, lá foi parar à prateleira. Só que não podia ir parar à biblioteca, pois temia-se o contacto da ousada docente com as almas puras e ingénuas dos meninos. Neste caso, optou-se por esconder a professora no arquivo municipal, onde não deveria contactar com o público e poderia ganhar alguma alergia na pele, por causa do pó dos canhenhos e das actas nunicipais, o que seria uma espécie de castigo divino. Ora, longe da vista, longe da tentação. O arquivo municipal não é lugar que se frequente, mas onde se deposita aquilo que já não interessa. Não era o caso da professora, bem pelo contrário. Mas ao "arquivar-se" a professora, arquivava-se o problema, arrumava-se a questão. É essa a função das prateleiras e do arquivo morto: continuando tudo desarrumado, fica tudo arrumadinho.
(As coisas e as palavras)

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