A Cidade não admite os seus
pobres que arrastam pelas ruas as suas feridas e deformações, estendendo a mão e
apelando à consciência daqueles que se
deslocam nos seus múltiplos afazeres. Não se sabe donde vieram, como se
instalaram aos poucos, como ocuparam as ruas sem que tenhamos reagido. Até que
a situação se tornou inaceitável. Esperemos que não seja tarde. Que haja
remédio. A nossa lassidão não pode ser compreendida como sinal de fraqueza. Os pobres
acusam-nos. Impedem-nos de dormir.
Em
primeiro lugar, e eu até compreendo, são a marca visível que revela que a
Cidade ainda não é perfeita, longe disso, e não consegue dominar a miséria. A
sua miséria. Depois, os pedintes importunam a consciência dos transeuntes que
afinal, nada podem fazer em relação a essa situação. Criou-se, assim, uma
relação quase hostil entre os pedintes e a Cidade. Esta sempre se regulou por
uma definição clara dos seus problemas e dos seus elementos. Nada existe por
acaso e isso tem permitido que a sua estrutura e organização se solidificassem,
que a Cidade ganhasse uma imagem invejável. Todos os seus elementos funcionam
em função de uma missão claramente definida, atribuída, assumida. Deste modo,
cada um percebendo o papel e a tarefa do seu vizinho, compreendia e justificava
a sua missão, todos os dias. Ninguém caminha por acaso, ninguém se detém com
súbitas dúvidas.
Ora,
a existência dos pedintes, o seu sem-lugar ambulante, a sua atopia nos
propósitos sociais, introduz um rastilho de anormalidade que se pode tornar
perigoso. Na estrutura da Cidade ninguém pode existir sem uma finalidade certa.
Os pedintes surgiram à revelia desta lógica, o que é inaceitável e contrário ao
progresso que todos desejamos.
Mas
os pedintes também se aperceberam desta nossa, digamos, hostilidade. E, aos
poucos, foram compreendendo que a lógica da Cidade exigia de cada situação, um
discurso, pelo menos, que a legitimasse. Foi assim que muitos pedintes começara
a justificar por escrito a sua condição e o facto de terem de recorrer à
caridade provável dos habitantes da Cidade.
Os
primeiros textos eram bastante elementares. Recordo aqui alguns que retive:
«Não tenho pai, nem mãe e sofro de uma doença sem cura», ou «Tenho doze irmãos,
o meu pai está tuberculoso e a minha mãe fugiu de casa».
Com
efeito, no início, os textos que os pedintes punham a circular não íam muito
além destas lacónicas descrições. Os transeuntes paravam pouco tempo a
informar-se da situação dos autores dos textos e a sua contribuição acabava por
estar na razão direta dessa curta mensagem. Por outro lado, alguns pedintes
começaram a fazer cópias que entregavam a colegas seus menos imaginativos ou de
condição menos miserável, pelo que, rapidamente, esses textos acabavam por
ficar conhecidos e desvalorizados. Alguns habitantes da Cidade chegavam a
aborrecer-se com esse facto e, mal poisavam os olhos nos pequenos textos,
abanavam a cabeça com ar de desaprovação e rapidamente continuavam o seu
caminho. Outros havia que, no entanto, procuravam saber mais pormenores, não
sei se para testar a sua autenticidade. Mas também havia quem ansiasse pela
continuação das história ou pelo seu mais improvável desfecho. Por exemplo, no
caso de a mãe ter fugido, gostavam de saber em que condições concretas isso
tinha acontecido, se se prostituía, se tinha fugido com algum homem ou mulher,
se deixara todos os filhos para trás, se deixou algum bilhete escrito (quando
sabiam escrever, o que não era muito provável) e, em caso afirmativo, se podiam
transcrever e acrescentar esse bilhete. Outros gostavam de se inteirar sobre as
doenças que os tinha afligido. Também havia quem quisesse olhar de mais perto
as deformações físicas que os pedintes anunciavam, para saber em que medida
exata correspondiam ao que estava escrito. Avaliava-se aí, segundo alguns a veracidade
e o realismo; para outros, isso não era o mais importante, e ficavam seduzidos pela
capacidade de fantasiar. A esmola, depois, era dada na proporção da satisfação das
pessoas que paravam para ler e viam satisfeitos os seus critérios. Do mesmo modo,
começou-se a criar o hábito de regressar nos outros dias, junto dos mesmos
pedintes, para saber se existiam novidades, se a história tinha progredido, se
as suas dúvidas e apreciações tinham
sido contempladas pelos pedintes nos textos seguintes. Claro, que a tudo isto
correspondia um aumento considerável das esmolas que eram entregues. Os pedintes
não podiam ficar mais satisfeitos. Valia a pena escrever.
Ora,
tudo isto começou a exigir dos pedintes outra postura. E alguns começaram a
perceber que os transeuntes que paravam junto deles estavam ávidos de notícias,
de outras histórias, uma espécie de fuga ao quotidiano da Cidade. E que tudo
isso devia ser passado a escrito. As mensagens que os acompanhavam começaram
por isso a mudar de tom e estrutura. No início, apenas incluíam mais detalhes.
Depois aprimorou-se o estilo. Finalmente, as informações passaram a ser fornecidas
em vários cartões, podendo as pessoas adquirir esses cartões e regressando no
dia seguinte, após a leitura das histórias, entregar a esmola que achavam
adequada. Também havia quem adquirisse um cartão por dia, pagando-o na altura,
mas colecionando todas suas continuações, até ao desfecho da história. Claro
que alguns pedintes mais oportunistas prolongavam desnecessariamente as
histórias, com pormenores sem conteúdo essencial, complicando os enredos, vivendo
duma adjetivação exuberante. Gostos.
Até que as autoridades perceberam que esta atividade talvez, sublinho talvez, não
representasse problema para a Cidade. Tornaram-se, por isso, condescendentes em
relação à multiplicação dos cartões e das histórias, não deixando, obviamente,
de vigiar essa atividade. Isto é, também eles passaram a ler as histórias. Algumas
continham referências à sua atividade, o que deixava satisfeitos os mais vaidosos.
Mas
não era verdade que tudo isto tinha em vista a satisfação dos que não escreviam,
isto é, dos que não precisavam de estender a mão à caridade pública, daqueles que
por efeito da lotaria tinham ficado ao abrigo das intempéries do destino?
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Muito
já se escreveu sobre a origem do romance e da literatura em geral. Eu percebo
que a Cidade se interrogue sobre o modo como se iniciou uma das suas mais
interessantes e fascinantes ficções. Mas o romance, género nobre, revela afinal
uma origem muito plebeia e miserável, como podem ver.
Provavelmente,
por essa razão, não a devia ter contado para que se mantivesse uma áurea
fascinante à volta dessa atividade tão criativa quanto misteriosa. Mas havendo
tanta especulação à sua volta, não suporto mais a ideia de que alguns autores,
de uma forma arrogante, queiram esconder a sua origem e tenham inventado
histórias fantasiosas sobre a sua atividade, como se estivessem a inventar uma
família brasonada para os seus antepassados miseráveis. Querem aproximar a sua
atividade criativa e inspirada da atividade dos deuses!... Poderá haver maior
arrogância?
Ora,
a história é bem outra e é tal como vos acabei de contar.
Podem,
pois, que a acabaram de ler, deixar-me a vossa esmola. Estou desempregado, a
minha mulher abandonou-me por não suportar mais a nossa vida miserável, sem
comida e sem um teto condigno. Ah!, e deixou-me com três filhos de tenra idade,
magros, sujos e ranhosos.
José Carlos S. de
Almeida, abril de 2019
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