A sua relação com a Biblioteca
estava para além dos livros. E para além da leitura desses livros. Bem, os
livros também estavam para além da leitura. Quer dizer, os livros estavam para
lá de si mesmos. Eram objetos físicos e ele achava que, na sua materialidade
própria, desenhavam um mundo. Um mundo mais consistente do que aquele que as
leituras proporcionavam. A sua Biblioteca, no último andar da casa, era o seu
mundo, o átrio do seu mundo. Fisicamente falando, também. Nem era um pequeno
mundo, como metaforicamente se poderia dizer, ou um mundo concetualmente
falando. À medida que foi adquirindo cada vez mais livros, elevou novas
estantes que isolavam aquela ampla sala do resto da casa. Da casa e dos que
nela habitavam. Aos poucos e poucos, por entre inesperadas estantes e
periclitantes pilhas de livros de equilíbrio duvidoso, tornava-se o acesso cada
vez mais labiríntico e mais inacessível aos outros, aos não-iniciados. Novas
zonas de interesse faziam nascer novas paredes artificias e irradiar novos
atalhos. Sentia-se muito bem ali. Gostava de passar por entre os livros, olhar
para eles e recordar as circunstâncias em que os adquirira ou os lera. A
propósito de cada um havia sempre um conjunto de acontecimentos que povoavam a
sua vida. Aos poucos foi-se apercebendo que a história escrita dos livros que
trazia para casa tinha menos a ver com o livro e as indicações que sabia acerca
dele, e mais com um cenário ou um acontecimento que laboriosamente construía à
sua volta ou o acaso fizera irromper. Por isso, também não os arrumava por
autor ou géneros, mas apenas os ía arrumando segundo a ordem cronológica com
que íam surgindo na sua vida e na biblioteca. Quando passeava por entre os
livros, revia a sua vida, os acontecimentos e os momentos que rodeavam a sua
aquisição. Deambular pela biblioteca era revisitar a sua vida, a sua história.
Rodeava, por isso, a aquisição
dos livros com momentos singulares de prazer. Um jantar especial, uma ida ao
teatro, um pensamento curioso que lhe ocorrera. Sempre que ía à ópera comprava
um livro. Ou vários, tudo dependendo do modo como o espetáculo decorrera. Havia
uma relação de proporcionalidade direta entre o agrado do desempenho dos
cantores líricos e o número de livros que trazia para casa. Preferia os romances
americanos em particular, a literatura anglo-saxónica em geral, especialmente
de autores que viveram em ex-colónias do Império Britânico. Agradava-lhe alguma
mentalidade colonial mal disfarçada. E os sentimentos contraditórios que se
revelavam em quem, progressista e liberal, assistia à derrocada dos impérios e
dos seus valores. Porque ele, quando passeava pela cidade, também sentia dessa
maneira, como se a cidade tivesse sido invadida por hordas de bárbaros que
anunciavam novos e terríveis tempos. Mas não se interessava apenas pela ficção.
Comprava alguma poesia. E nas noites chuvosas de inverno deliciava-se com
biografias e livros de viagens. Quando reparava nesses livros, muito mais
tarde, conseguia lembrar-se perfeitamente da hora tardia a que se deitara e da
intensidade daquela chuva naquela noite. Cada livro reconstituía, deste modo,
uma constelação de emoções, um momento no percurso da vida do homem, instantes
que se dilatavam.
Passava a maior parte do tempo na
sua Biblioteca. Um número cada vez maior de horas passadas naquela fortaleza de
livros, impedia-o de estar com a família. Mas isso acontecera progressivamente.
À medida que a sua biblioteca crescia fisicamente, que as paredes de livros íam
fechando o espaço, o seu coração tornava-se mais frio em relação aos que com
ele habitavam a sua casa. Encontravam-se às horas das refeições, mas isso ía
acontecendo cada vez menos vezes. Frequentemente, comia uma sopa sentado à
secretária, enquanto, ao mesmo tempo, deliciado, desfolhava um antigo livro de
gravuras da Polinésia, uma raridade do século XVIII, editado pela Sociedade
Geográfica de Londres. Ou então, ficava por um chá, um reconfortante chá, e
dormia uma horita recostado num enorme cadeirão de couro que ocupava uma exata
posição central na Biblioteca. O chá bastava-lhe para a tarde toda.
Quando saía à noite, fazia-o
sozinho. Não tinha amigos e talvez fosse possível falar aqui de uma certa auto-suficiência
arrogante. Apenas duas vezes por mês saía com a sua mulher. Íam a um
restaurante italiano, invariavelmente pediam o mesmo. Ou melhor, já não pediam,
o que lhes diminuía o tempo de espera, os empregados, ao fim destes anos, já
sabiam o que o casal ía querer. No princípio, os empregados, simpaticamente,
ainda se atreveram com algumas sugestões alternativas, mas acabaram por
desistir. Aliás, essas sugestões foram sempre recebidas de uma forma muito
desagradável. Um olhar reprovador, a ausência de uma única palavra, surtiram
rápido efeito. Ele não queria, de modo nenhum, alterar aquela rotina, conseguindo,
desse modo, diminuir o efeito perturbador que tinham essas saídas forçadas. A
Biblioteca proporcionava-lhe uma incrível e bastante serenidade, como se
sentisse como um imperador desse mundo onde reinava a sós com a sua memória. E
fora do seu mundo sentia-se perdido, desorientado num espaço para o qual nada
contribuíra, que encontrara já feito, que obedecia a lógicas que lhe eram
completamente estranhas. Nessa espessura nada encontrava que o reconduzisse a
si mesmo. Ele não se revia no mundo exterior à sua Biblioteca, nada ali fora
lhe iluminava a memória ou dizia algo sobre si próprio. E isso cansava-o, como
se o mundo, ali à sua frente, lhe fizesse um constante apelo à busca de um
sentido que ele nem sabia muito bem o que poderia ser. Além disso, bastava-se a
si mesmo quando passeava na Biblioteca. A Biblioteca tinha uma luz própria, um
cheiro próprio que se desprendia dos livros aparentemente adormecidos. Nada
podia substituir o aroma aconchegante dos livros. E a forma como amaciavam a
luz. E como, adiantando-se o dia, se revelavam contínuas sombras projetadas
pela luz de uma mansarda, avançando geometricamente, avançando e recuando, num
bailado rigoroso mas lento.
A Biblioteca acontecera pela sua
própria mão. E por isso ela o devolvia a si mesmo. E ele revia-se nas suas
formas, pois era o seu tempo, o local onde, recolhido, se reapossava de si
mesmo. E à medida que a Biblioteca crescia, mais ela o aproximava de si mesmo,
como se a evolução física da Biblioteca, reconstruísse a retrospetiva da sua história.
E, avançando no futuro, adornasse mais fielmente o passado. Afinal, os livros
eram os maiores acontecimentos da sua vida ou a eles estavam ligados. Por isso,
a história que contava cada um dos livros ficava aquém da história que a eles
se ligava como um pedaço de si mesmo.
Adquiria livros todos os dias. E
eles acabavam por se arrumar de acordo com o desfile desses dias. No início
dispunha os livros tematicamente até que se apercebeu que, sendo tão forte a
sua ligação aos livros, seria mais fiel se ele os fosse arrumando pela ordem
com que íam surgindo na sua vida e na Biblioteca. Seguia, portanto, um critério
cronológico ou, dito de outro modo, afetivo. E quando passeava junto dos livros
assim ordenados tinha a nítidas sensação de que ía percorrendo o tempo que
passou pela sua existência. A viagem por entre os livros era uma viagem pelo
tempo, pela sua memória. E quando se demorava diante de uma secção determinada
era como se o tempo parasse e tudo ficasse concentrado naquele instante.
E havia alguns anos
particularmente intensos da sua vida que se refletiam quer na quantidade quer
no tipo de livros que trouxera de casa. Um desses anos, em que pensara
abandonar a vida académica, caracterizou-se pela leitura exaustiva de livros
sobre jardins, jardinagem e Wittgenstein.
No ano em que conheceu Paula, sua
aluna na faculdade onde ensinava, alterou completamente o tipo de livros que
habitualmente comprava e lia. À sua paixão súbita e intensa pela rapariga
correspondeu a leitura exaustiva de alguns poetas gregos clássicos e
contemporâneos. Aqui, a obsessão por Constantin Kavafis e por tudo o que dizia
respeito a esse poeta e a Alexandria foi particularmente notória. Também se
interessou por poetas japoneses. E foi nessa altura que releu toda a obra de
Jorge Luís Borges. Releu, comprando novas edições, pois era-lhe insuportável a
memória que estava associada aos livros de Borges que já se encontravam na
Biblioteca. Estranhamente, sentiu que, quando pegou nessas edições, tudo isso
afetava a sua relação com Paula.
Paula também comungava do
interesse do homem por livros. E foi assim que começaram a sair juntos, a
visitar Bibliotecas, exposições e frequentar livrarias e alfarrabistas. Dessas
vezes, o homem fazia questão de oferecer livros a Paula. Esta aceitava pois tratava-se
de algo que, também para ela, era essencial. E o homem ficava feliz. Era uma
felicidade nova, que nunca lhe tinha acontecido. Essas peregrinações conjuntas
fizeram aumentar a paixão entre ambos. Simultaneamente, a sua mulher começou a
desconfiar dos novos hábitos do homem. Passava mais tempo fora de casa. E a
partir do momento em que começou a frequentar a casa de Paula, que vivia
sozinha, começou a chegar tarde a casa. Progressivamente, o homem começou a
deixar livros em casa de Paula. Os que comprava quando saía com ela e, passado
algum tempo, os que trazia da sua Biblioteca e lhe emprestava. Fazia-o de uma
forma que era para si muito estranha. Porque lhe custava muito emprestar
livros. Ou melhor, muito raramente os emprestava. Os seus livros eram a sua
história e não gostava de se desfazer, mesmo que durante algum tempo, de
parcelas da sua vida. Mas fazia-lhe bem essa transação. De certo modo, aprendia
novas formas de estar. E reconhecia que Paula também sabia cuidar dos livros.
Um dia, quando Paula pretendeu devolver-lhe alguns livros que entretanto já
lera, o homem achou que não tinha sentido levar os livros de volta. O facto de
terem sido lidos pela rapariga, atribuía-lhes um significado que faria com que
ficassem desajustados na sua Biblioteca. Aí, recusou levá-los. Ambos sorriram,
pensando no resultado e significado dessa atitude. Era uma decisão histórica,
cujo alcance em toda a sua real dimensão, não era ainda completamente
percetível. No entanto, o homem sentiu um estremecimento interior no momento em
que Paula aceitava os livros de volta e tornava a colocá-los na sua estante.
Continuando nesta curiosa
transação, o homem deu consigo a reparar que a sua Biblioteca começava a
registar algumas clareiras, algumas prateleiras registavam a falta de alguns
livros. Porém, o homem não deixava de sorrir quando notava esses espaços
vazios, sem livros, porque de certa forma comemoravam a sua nova relação, a sua
nova paixão.
Das poucas vezes que a sua mulher
vinha à Biblioteca também notou que faltavam algumas filas de livros.
Sentindo-se curiosa em saber se essas falhas progrediam e aumentavam, pelo que
começou a aparecer mais vezes, mesmo na ausência do marido. E não pôde deixar
de se sentir preocupada. Ao que parece, foi aí, perante algumas estantes vazias,
progressivamente esvaziadas, que começou a desconfiar da nova situação do
marido. Estalaram algumas discussões, nomeadamente, quando a esposa reparou que
os livros que faltavam eram, na sua maioria, pequenos livros, romances breves,
muita poesia, excessiva poesia, e alguns livros de pintura, permanecendo
inalteráveis as seções relativas a enciclopédias e dicionários, bem como os
romances históricos, muito em voga nos anos oitenta. Ela concluiu rapidamente
que era possível que o marido estivesse a viver uma situação nova, algo que
nunca lhe acontecera. Uma paixão amorosa?, admitiu a custo. Por isso mesmo,
interrogou o marido sobre a ausência prolongada de alguns livros. O homem
apressou-se a inventar uma desculpa qualquer relacionada com o trabalho na Faculdade,
mas a mulher achou que se tratava de uma desculpa muito mal elaborada, a
despachar, quando esperava dele um discurso mais estruturado e fundamentado. A
esposa achou que aquela desculpa tão elementar e prosaica não estava de acordo
com a estrutura mental do companheiro que ela sempre conhecera. Para ela,
aquela justificação pindérica não podia deixar de constituir um aviso
subliminar. E que o marido, tão pouco atreito a mudanças, estava diferente.
Como a biblioteca. A sua preciosa e reservada biblioteca.
As discussões não ficaram por aí.
Se existia alguma nova mulher na vida dele, era a pergunta mais insistente. Uma
pergunta tipicamente feminina. Mas o homem respondeu-lhe que a sua vida eram
apenas os livros e que isso bastava-lhe muito bem. A mulher não sentiu qualquer
vacilação na resposta do marido, apesar de saber que estava a atingir o coração
do seu relacionamento, que estava a pôr em causa a franqueza e a lealdade do
companheiro de há mais de vinte anos. Qualquer homem, mesmo o mais farsante, seria
incapaz de deixar escapar um mínimo sinal. Uma qualquer tremura na voz, uma
ligeira alteração da respiração, um músculo facial descompassado, a
desconfortável posição das mãos, tudo isso, qualquer coisa de tudo isso,
poderia escapar ao controlo do seu autor. A mulher, escrutinadora, não notou
nada, porque nada havia a notar. O homem estava claramente convencido do que
estava a dizer. Não se sentiu atraiçoado pelas palavras escolhidas. Achava que
não estava a mentir. É que nem sequer se preocupava por encontrar uma mentira
piedosa. Não. Apenas descrevia o que se passava, o que sempre se passara.
A sua vida estava de facto
relacionada com os livros. Mas quando chegava a casa de Paula percebia que a
realidade era outra. Foi-se habituando a reparar que quando lhe trazia livros
para casa, para esta casa, estava a entregar-se, como nunca julgou que fosse
possível fora das histórias dos livros. À medida que as pilhas dos livros íam
crescendo nas diversas divisões da casa de Paula e se ía desbastando a sua primitiva
Biblioteca, sentiu que a sua vida anterior ía perdendo sentido. Isso mesmo
confessou à rapariga. Esta percebia tudo e sorriu. Amava-o. Amavam-se. Nesse
momento e nesse lugar, o homem compreendeu que estava a construir uma nova
Biblioteca.
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