sexta-feira, 19 de abril de 2019

A biblioteca da alma


A sua relação com a Biblioteca estava para além dos livros. E para além da leitura desses livros. Bem, os livros também estavam para além da leitura. Quer dizer, os livros estavam para lá de si mesmos. Eram objetos físicos e ele achava que, na sua materialidade própria, desenhavam um mundo. Um mundo mais consistente do que aquele que as leituras proporcionavam. A sua Biblioteca, no último andar da casa, era o seu mundo, o átrio do seu mundo. Fisicamente falando, também. Nem era um pequeno mundo, como metaforicamente se poderia dizer, ou um mundo concetualmente falando. À medida que foi adquirindo cada vez mais livros, elevou novas estantes que isolavam aquela ampla sala do resto da casa. Da casa e dos que nela habitavam. Aos poucos e poucos, por entre inesperadas estantes e periclitantes pilhas de livros de equilíbrio duvidoso, tornava-se o acesso cada vez mais labiríntico e mais inacessível aos outros, aos não-iniciados. Novas zonas de interesse faziam nascer novas paredes artificias e irradiar novos atalhos. Sentia-se muito bem ali. Gostava de passar por entre os livros, olhar para eles e recordar as circunstâncias em que os adquirira ou os lera. A propósito de cada um havia sempre um conjunto de acontecimentos que povoavam a sua vida. Aos poucos foi-se apercebendo que a história escrita dos livros que trazia para casa tinha menos a ver com o livro e as indicações que sabia acerca dele, e mais com um cenário ou um acontecimento que laboriosamente construía à sua volta ou o acaso fizera irromper. Por isso, também não os arrumava por autor ou géneros, mas apenas os ía arrumando segundo a ordem cronológica com que íam surgindo na sua vida e na biblioteca. Quando passeava por entre os livros, revia a sua vida, os acontecimentos e os momentos que rodeavam a sua aquisição. Deambular pela biblioteca era revisitar a sua vida, a sua história.
Rodeava, por isso, a aquisição dos livros com momentos singulares de prazer. Um jantar especial, uma ida ao teatro, um pensamento curioso que lhe ocorrera. Sempre que ía à ópera comprava um livro. Ou vários, tudo dependendo do modo como o espetáculo decorrera. Havia uma relação de proporcionalidade direta entre o agrado do desempenho dos cantores líricos e o número de livros que trazia para casa. Preferia os romances americanos em particular, a literatura anglo-saxónica em geral, especialmente de autores que viveram em ex-colónias do Império Britânico. Agradava-lhe alguma mentalidade colonial mal disfarçada. E os sentimentos contraditórios que se revelavam em quem, progressista e liberal, assistia à derrocada dos impérios e dos seus valores. Porque ele, quando passeava pela cidade, também sentia dessa maneira, como se a cidade tivesse sido invadida por hordas de bárbaros que anunciavam novos e terríveis tempos. Mas não se interessava apenas pela ficção. Comprava alguma poesia. E nas noites chuvosas de inverno deliciava-se com biografias e livros de viagens. Quando reparava nesses livros, muito mais tarde, conseguia lembrar-se perfeitamente da hora tardia a que se deitara e da intensidade daquela chuva naquela noite. Cada livro reconstituía, deste modo, uma constelação de emoções, um momento no percurso da vida do homem, instantes que se dilatavam.
Passava a maior parte do tempo na sua Biblioteca. Um número cada vez maior de horas passadas naquela fortaleza de livros, impedia-o de estar com a família. Mas isso acontecera progressivamente. À medida que a sua biblioteca crescia fisicamente, que as paredes de livros íam fechando o espaço, o seu coração tornava-se mais frio em relação aos que com ele habitavam a sua casa. Encontravam-se às horas das refeições, mas isso ía acontecendo cada vez menos vezes. Frequentemente, comia uma sopa sentado à secretária, enquanto, ao mesmo tempo, deliciado, desfolhava um antigo livro de gravuras da Polinésia, uma raridade do século XVIII, editado pela Sociedade Geográfica de Londres. Ou então, ficava por um chá, um reconfortante chá, e dormia uma horita recostado num enorme cadeirão de couro que ocupava uma exata posição central na Biblioteca. O chá bastava-lhe para a tarde toda.
Quando saía à noite, fazia-o sozinho. Não tinha amigos e talvez fosse possível falar aqui de uma certa auto-suficiência arrogante. Apenas duas vezes por mês saía com a sua mulher. Íam a um restaurante italiano, invariavelmente pediam o mesmo. Ou melhor, já não pediam, o que lhes diminuía o tempo de espera, os empregados, ao fim destes anos, já sabiam o que o casal ía querer. No princípio, os empregados, simpaticamente, ainda se atreveram com algumas sugestões alternativas, mas acabaram por desistir. Aliás, essas sugestões foram sempre recebidas de uma forma muito desagradável. Um olhar reprovador, a ausência de uma única palavra, surtiram rápido efeito. Ele não queria, de modo nenhum, alterar aquela rotina, conseguindo, desse modo, diminuir o efeito perturbador que tinham essas saídas forçadas. A Biblioteca proporcionava-lhe uma incrível e bastante serenidade, como se sentisse como um imperador desse mundo onde reinava a sós com a sua memória. E fora do seu mundo sentia-se perdido, desorientado num espaço para o qual nada contribuíra, que encontrara já feito, que obedecia a lógicas que lhe eram completamente estranhas. Nessa espessura nada encontrava que o reconduzisse a si mesmo. Ele não se revia no mundo exterior à sua Biblioteca, nada ali fora lhe iluminava a memória ou dizia algo sobre si próprio. E isso cansava-o, como se o mundo, ali à sua frente, lhe fizesse um constante apelo à busca de um sentido que ele nem sabia muito bem o que poderia ser. Além disso, bastava-se a si mesmo quando passeava na Biblioteca. A Biblioteca tinha uma luz própria, um cheiro próprio que se desprendia dos livros aparentemente adormecidos. Nada podia substituir o aroma aconchegante dos livros. E a forma como amaciavam a luz. E como, adiantando-se o dia, se revelavam contínuas sombras projetadas pela luz de uma mansarda, avançando geometricamente, avançando e recuando, num bailado rigoroso mas lento.
A Biblioteca acontecera pela sua própria mão. E por isso ela o devolvia a si mesmo. E ele revia-se nas suas formas, pois era o seu tempo, o local onde, recolhido, se reapossava de si mesmo. E à medida que a Biblioteca crescia, mais ela o aproximava de si mesmo, como se a evolução física da Biblioteca, reconstruísse a retrospetiva da sua história. E, avançando no futuro, adornasse mais fielmente o passado. Afinal, os livros eram os maiores acontecimentos da sua vida ou a eles estavam ligados. Por isso, a história que contava cada um dos livros ficava aquém da história que a eles se ligava como um pedaço de si mesmo.
Adquiria livros todos os dias. E eles acabavam por se arrumar de acordo com o desfile desses dias. No início dispunha os livros tematicamente até que se apercebeu que, sendo tão forte a sua ligação aos livros, seria mais fiel se ele os fosse arrumando pela ordem com que íam surgindo na sua vida e na Biblioteca. Seguia, portanto, um critério cronológico ou, dito de outro modo, afetivo. E quando passeava junto dos livros assim ordenados tinha a nítidas sensação de que ía percorrendo o tempo que passou pela sua existência. A viagem por entre os livros era uma viagem pelo tempo, pela sua memória. E quando se demorava diante de uma secção determinada era como se o tempo parasse e tudo ficasse concentrado naquele instante.
E havia alguns anos particularmente intensos da sua vida que se refletiam quer na quantidade quer no tipo de livros que trouxera de casa. Um desses anos, em que pensara abandonar a vida académica, caracterizou-se pela leitura exaustiva de livros sobre jardins, jardinagem e Wittgenstein.
No ano em que conheceu Paula, sua aluna na faculdade onde ensinava, alterou completamente o tipo de livros que habitualmente comprava e lia. À sua paixão súbita e intensa pela rapariga correspondeu a leitura exaustiva de alguns poetas gregos clássicos e contemporâneos. Aqui, a obsessão por Constantin Kavafis e por tudo o que dizia respeito a esse poeta e a Alexandria foi particularmente notória. Também se interessou por poetas japoneses. E foi nessa altura que releu toda a obra de Jorge Luís Borges. Releu, comprando novas edições, pois era-lhe insuportável a memória que estava associada aos livros de Borges que já se encontravam na Biblioteca. Estranhamente, sentiu que, quando pegou nessas edições, tudo isso afetava a sua relação com Paula.
Paula também comungava do interesse do homem por livros. E foi assim que começaram a sair juntos, a visitar Bibliotecas, exposições e frequentar livrarias e alfarrabistas. Dessas vezes, o homem fazia questão de oferecer livros a Paula. Esta aceitava pois tratava-se de algo que, também para ela, era essencial. E o homem ficava feliz. Era uma felicidade nova, que nunca lhe tinha acontecido. Essas peregrinações conjuntas fizeram aumentar a paixão entre ambos. Simultaneamente, a sua mulher começou a desconfiar dos novos hábitos do homem. Passava mais tempo fora de casa. E a partir do momento em que começou a frequentar a casa de Paula, que vivia sozinha, começou a chegar tarde a casa. Progressivamente, o homem começou a deixar livros em casa de Paula. Os que comprava quando saía com ela e, passado algum tempo, os que trazia da sua Biblioteca e lhe emprestava. Fazia-o de uma forma que era para si muito estranha. Porque lhe custava muito emprestar livros. Ou melhor, muito raramente os emprestava. Os seus livros eram a sua história e não gostava de se desfazer, mesmo que durante algum tempo, de parcelas da sua vida. Mas fazia-lhe bem essa transação. De certo modo, aprendia novas formas de estar. E reconhecia que Paula também sabia cuidar dos livros. Um dia, quando Paula pretendeu devolver-lhe alguns livros que entretanto já lera, o homem achou que não tinha sentido levar os livros de volta. O facto de terem sido lidos pela rapariga, atribuía-lhes um significado que faria com que ficassem desajustados na sua Biblioteca. Aí, recusou levá-los. Ambos sorriram, pensando no resultado e significado dessa atitude. Era uma decisão histórica, cujo alcance em toda a sua real dimensão, não era ainda completamente percetível. No entanto, o homem sentiu um estremecimento interior no momento em que Paula aceitava os livros de volta e tornava a colocá-los na sua estante.
Continuando nesta curiosa transação, o homem deu consigo a reparar que a sua Biblioteca começava a registar algumas clareiras, algumas prateleiras registavam a falta de alguns livros. Porém, o homem não deixava de sorrir quando notava esses espaços vazios, sem livros, porque de certa forma comemoravam a sua nova relação, a sua nova paixão.
Das poucas vezes que a sua mulher vinha à Biblioteca também notou que faltavam algumas filas de livros. Sentindo-se curiosa em saber se essas falhas progrediam e aumentavam, pelo que começou a aparecer mais vezes, mesmo na ausência do marido. E não pôde deixar de se sentir preocupada. Ao que parece, foi aí, perante algumas estantes vazias, progressivamente esvaziadas, que começou a desconfiar da nova situação do marido. Estalaram algumas discussões, nomeadamente, quando a esposa reparou que os livros que faltavam eram, na sua maioria, pequenos livros, romances breves, muita poesia, excessiva poesia, e alguns livros de pintura, permanecendo inalteráveis as seções relativas a enciclopédias e dicionários, bem como os romances históricos, muito em voga nos anos oitenta. Ela concluiu rapidamente que era possível que o marido estivesse a viver uma situação nova, algo que nunca lhe acontecera. Uma paixão amorosa?, admitiu a custo. Por isso mesmo, interrogou o marido sobre a ausência prolongada de alguns livros. O homem apressou-se a inventar uma desculpa qualquer relacionada com o trabalho na Faculdade, mas a mulher achou que se tratava de uma desculpa muito mal elaborada, a despachar, quando esperava dele um discurso mais estruturado e fundamentado. A esposa achou que aquela desculpa tão elementar e prosaica não estava de acordo com a estrutura mental do companheiro que ela sempre conhecera. Para ela, aquela justificação pindérica não podia deixar de constituir um aviso subliminar. E que o marido, tão pouco atreito a mudanças, estava diferente. Como a biblioteca. A sua preciosa e reservada biblioteca.
As discussões não ficaram por aí. Se existia alguma nova mulher na vida dele, era a pergunta mais insistente. Uma pergunta tipicamente feminina. Mas o homem respondeu-lhe que a sua vida eram apenas os livros e que isso bastava-lhe muito bem. A mulher não sentiu qualquer vacilação na resposta do marido, apesar de saber que estava a atingir o coração do seu relacionamento, que estava a pôr em causa a franqueza e a lealdade do companheiro de há mais de vinte anos. Qualquer homem, mesmo o mais farsante, seria incapaz de deixar escapar um mínimo sinal. Uma qualquer tremura na voz, uma ligeira alteração da respiração, um músculo facial descompassado, a desconfortável posição das mãos, tudo isso, qualquer coisa de tudo isso, poderia escapar ao controlo do seu autor. A mulher, escrutinadora, não notou nada, porque nada havia a notar. O homem estava claramente convencido do que estava a dizer. Não se sentiu atraiçoado pelas palavras escolhidas. Achava que não estava a mentir. É que nem sequer se preocupava por encontrar uma mentira piedosa. Não. Apenas descrevia o que se passava, o que sempre se passara.
A sua vida estava de facto relacionada com os livros. Mas quando chegava a casa de Paula percebia que a realidade era outra. Foi-se habituando a reparar que quando lhe trazia livros para casa, para esta casa, estava a entregar-se, como nunca julgou que fosse possível fora das histórias dos livros. À medida que as pilhas dos livros íam crescendo nas diversas divisões da casa de Paula e se ía desbastando a sua primitiva Biblioteca, sentiu que a sua vida anterior ía perdendo sentido. Isso mesmo confessou à rapariga. Esta percebia tudo e sorriu. Amava-o. Amavam-se. Nesse momento e nesse lugar, o homem compreendeu que estava a construir uma nova Biblioteca.

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