O Gipsy chegou à nossa casa por volta da Páscoa de 2017. A intenção
inicial da Filipa que
o trouxe foi subtraí-lo ao ambiente hostil do bairro onde
ele nascera e passara o seu primeiro ano de vida e ainda vivia, ou melhor, sobrevivia,
pois todos os seus irmãos da ninhada acabaram por morrer, vítimas de
atropelamentos, doenças não tratadas, maus tratos infligidos pelos garotos do
bairro, não passando do primeiro ano de vida.
Até chegar à nossa casa e interagir com os matulões que já cá estavam,
nunca nos passara pela cabeça vir a adotar um cão minúsculo, risível,
irrisório. Foi bem recebido, mas, no início, não viera para ficar.
Para ficar, o Gipsy, que entretanto mudara de nome, adotando este em homenagem
ao bairro onde nascera[1],
teve que vencer, ou antes, derrotar, os nossos preconceitos acerca de cães tão
pequenos. Apesar do seu tamanho de cão miniatura, o Gipsy teve que conquistar
um espaço decisivo na casa, nos nossos corações e na nossa disponibilidade
mental[2].
E teve que se impor àqueles que, já cá estando, se arrogavam do poder e domínio
que já possuíam por razões de antiguidade e de estatuto. Era estatuto, mas
sobretudo estatura. O Gipsy cabia na boca do Gorki ou do Gaudí. Só que
conseguiu caber no coração deles.
O Gipsy conquistou tudo o que tem. Sem ajudas excecionais, privilégios
especiais, subsídios duplicados. Quando vivia na raia do concelho de Lisboa (o bairro
está colado ao concelho de Loures), nunca reclamou ou recebeu qualquer ajuda
de custo por vias duma qualquer condição motivada por uma qualquer insularidade,
periferia ou interioridade. O Gipsy é um lutador de causas singulares, mas só
pode contar com a sua mente rápida e ágil, a sua resiliência e a sua capacidade
de triunfar sobre a adversidade. O Gipsy desenvolveu um catálogo de competências
próprias para enfrentar os tempos modernos.
O Gipsy tinha vivido na rua, sujeito ao frio inclemente e à chuva
impiedosa; tinha passado fome e sede muitas vezes e muitas vezes tinha levado
pancada sem perceber porquê e para quê. Contudo, tinha feito da adversidade o
ambiente propício[3] para
desenvolver skills de exceção. Por
isso, já chegara mais longe que os seus irmãos, os seus companheiros de
infortúnio.
Mas havia outra coisa. O Gipsy, todos os dias, logo de manhã, seguia os
miúdos do bairro até à escola e aí se introduzia à socapa, primeiro ludibriando
a vigilância das funcionárias, contando com a sua cumplicidade depois. Com
efeito, todos os dias entrava na sala da Filipa e assistia sossegado, num
canto, ao trabalho desenvolvido na aula. Em suma, o Gipsy tinha uma vantagem
que o destacava e que resultou de ir todos os dias à escola. Podem dizer que
ele pouco aprendia, mas isso não o tornava pior aluno que a grande maioria.
O Gipsy, passado um ano, regressou à sua sala, mas apenas para matar saudades. |
O Gipsy era, de facto, um visiting
schollar como alguns, um assistente convidado como outros, mas com as
mesmas capacidades de ambos, arrivistas dos novos tempos. Foi mais vezes à escola que o Feliciano Barreiras
Duarte e que o Relvas. Não obteve nenhum diploma, mas também não forjou nenhum[4].
Foi todos os dias à escola e conquistou o coração generoso da professora.
E provou que a educação, uma boa educação, pode mudar a vida das pessoas.
E dos cães.
[1] "Nascer"
é um eufemismo. Cães como o Gipsy, nestes ambientes, não nascem, aparecem. Também não morrem, desaparecem, deixam de se ver. Até que
aparecem... já extintos. Neste sentido, estes infortunados cães são a prova
viva e exemplar duma sociedade de classes. Contra os neoliberais que inundam o
pensamento das sociedades atuais, o Gipsy e os seus irmãos demonstram que o
pensamento de Marx continua bem vivo.
[2] O Gipsy
obrigou-nos a repensar o significado do que é conviver com quem é diferente.
Não bastam as pias perorações bem intencionadas do multiculturalismo. Já agora,
como recordava Engels a propósito da práxis como critério da verdade, the proof of the pudding is eating.
[3] Não sou
cínico ao ponto de usar a expressão do agrado dos mentores neoliberais e, em
vez de lhe chamar "ambiente hostil", apelidá-la de "janela de
oportunidades".
[4] A
propósito do diploma forjado da dirigente do PP espanhol, Cristina Cifuentes,
veja-se o artigo de Milagros Pérez Oliva, publicado na edição de hoje de El País e justamente intitulado, «La
corrosión moral y el precio de mentir en politica», concluindo que ao invés do
que se passa em Espanha, no Reino Unido a mentira tem consequências políticas
relevantes, como aconteceu com a ministra do Interior, Amber Rudd. Aliás, no
gabinete de Theresa May, são já três os seus membros que se demitiram desde
novembro passado por mentir. Cf. o artigo referido aqui ou em: https://elpais.com/elpais/2018/04/30/opinion/1525113476_754429.html
(acedido em 1 de maio de 2018).
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