domingo, 13 de maio de 2018

Como os meus cães me tornam mais humano

Gorky e Gaudí

O olhar dos meus cães, longe de sugerirem uma qualquer indistinção homem-animal[1], devolvem-me e estimulam a minha humanidade. Quando o Gorky me olha espantado ou o Gaudí se aninha no meu colo, eu torno-me mais humano. A vantagem única de lidar com os animais é que temos a possibilidade de nos tornarmos mais humanos e melhores pessoas. É tão verdade, como o seu contrário. Aquilo que sabemos da tragédia de alguns animais revela também o que há de pior no coração dos homens, a sua impiedade e, pior, a sua indiferença em relação ao outro.
A nossa casa habitada pelos nossos cães, a nossa sala de estar, de livre acesso, torna-se mais humana. A casa é, com eles, um espaço mais humanamente habitado. A sua presença remete-nos a todo o momento para o nosso habitar, para o nosso modo de habitar. Uma casa com cães é indubitavelmente habitada por pessoas.
Emmanuel Lévinas (1905-1955)
Alain Finkielkraut, no seu ensaio sobre o século XX, A Humanidade Perdida[2], relata-nos um episódio passado com o filósofo francês Emmanuel Lévinas, oriundo duma família judaica da Lituânia, e que este regista aquando da sua experiência enquanto prisioneiro do regime nazi, detido num campo na Alemanha[3]. Ora, um dia, teria aparecido no stammlager um cão que estava abandonado. Os prisioneiros deram-lhe o nome de Bobby e o Bobby adquiriu o hábito de os cumprimentar com alegres latidos, quer nas concentrações matinais, quer quando regressavam do trabalho[4].
Esse cumprimento era uma forma de reconhecimento dos prisioneiros que sentiam, desta forma, que lhes era devolvida a sua condição de seres humanos. Reconhece Lévinas que aquele comportamento do Bobby era para eles, prisioneiros sem esperança, um reconhecimento essencial naquela situação. O cão Bobby devolvia-lhes a humanidade suspensa. Por essa razão, passadas algumas semanas, as sentinelas alemãs decidiram expulsar o animal.


[1] Voltarei a este tema, mas reconheço que é neste ponto do suposto "perigo" da indistinção homem-animal que se acoitam muitos dos irritados adversários dos direitos dos animais, como se pode ver a propósito da recente legislação aprovada sobre a possibilidade dos animais acompanharem os seus donos nos restaurantes.
[2] Alain Finkielkraut, A Humanidade Perdida - ensaio sobre o século XX, Porto, Ed. ASA, 1997, 134 pp.
[3] Emmanuel Lévinas, «Nom d'un chien ou le droit naturel», in Difficile Liberté, Paris, Albin Michel, 1976, p. 201.
[4] Alain Finkielkraut, op. cit., p. 10.

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