terça-feira, 28 de agosto de 2018

De passagem

Diante da minha janela passa uma rua
o fim da rua que era
também o fim do mundo.
Era um mundo cheio de pressa
o mundo que passava diante
da minha janela.
Até que um dia passaste
nessa rua
atravessaste o mundo
que passava
quando passavas.
A rua ficou diferente
O mundo já não era o mesmo.
E os meus olhos até aí cegos
tiveram que aprender tudo
outra vez.
(Lisboa, agosto, 2009-2014)

domingo, 19 de agosto de 2018

O eterno retorno do fascismo segundo Rob Riemen


                Uma das minhas leituras de verão inclui um curto e oportuníssimo ensaio de Rob Riemen, um filósofo holandês nascido em 1961: O Eterno Retorno do Fascismo[1]. Riemen começa por enquadrar propedeuticamente a reflexão sobre este retorno reiterado do fascismo. Em primeiro lugar, a questão terminológica: a palavra «fascismo» é tabu na Europa e usam-se várias denominações para clarificar movimentos da direita e extrema-direita (conservadorismo radical, populismo de direita), mas nunca usa o termo «fascismo». Ora, alerta Riemen, se queremos combater eficazmente o fascismo, teremos de o chamar pelo seu nome, não deveremos temer o uso da palavra adequada: «fascismo»[2]. Por outro lado, há que ter em conta que o fascismo corresponde à politização de uma mentalidade que se começara a desenvolver no cenário europeu. É assim que regressa a alguns autores que logo no início do século XIX vão dando conta dessa atmosfera: Goethe, Tocqueville, Nietzsche e, mais tarde, Ortega Y Gasset. O que nos relatam esses autores é sublinhado por Riemen? Fundamentalmente, a perda dos valores espirituais que acarreta não só o desaparecimento da moral, como da cultura.
A Europa que, no século XX, estava no limiar duma sociedade livre, onde se respeitava a liberdade individual, se assumia a responsabilidade pessoal e se cultivavam os valores espirituais que apoiavam o ideal de civilização, acaba, segundo Ortega Y Gasset, por rejeitar esta oportunidade histórica em nome dum novo tipo de indivíduo: o homem da multidão, o homem-massa (pp. 21-22). A ascensão deste tipo de homem representa uma ameaça direta aos valores e ideais da democracia liberal e do humanismo europeu, "tradições em que o desenvolvimento espiritual e moral do indivíduo livre garante os fundamentos de uma sociedade livre e aberta" (p. 22). Ora, o caráter niilista desta sociedade de massas é reforçado por outros fatores, como, por exemplo, os mass media que "são a melhor escola para os demagogos, como estes retiram o seu poder do facto de o povo, à força de se alimentar de uma linguagem que mais não faz do que simplificar, não compreender mais nada, nem querer ler ou ouvir coisas diferentes" (p. 25). Acaba, deste modo, por se desenvolver uma sociedade obcecada por trivialidades, cultivando a banalidade e a tagarelice, atolada em ressentimento e medo, onde a política acaba por se tornar assunto de demagogos. Por outro lado, explora-se uma cultura do ressentimento que elege um bode expiatório que acusa de causa de todos os males: o judeu. Daí  concluir Riemen que os disfuncionamentos sociais e a crise económica não bastarem para explicar a ascensão do fascismo; é que "o fascismo está demasiado enraizado no culto do ressentimento e no vazio espiritual" (p. 35). A par desse clima espiritual, Riemen acusa também a arrogância e a cobardia das elites  sociais em Itália e na Alemanha. Por exemplo, os liberais deixaram de defender o ideal da liberdade e do humanismo europeu, para se interessarem apenas pela liberdade dos mercados; os conservadores, por sua vez, estavam preparados para trocar, sem escrúpulos, os valores espirituais pela preservação do seu próprio poder.
                Esta enraizamento do fascismo num determinado ambiente espiritual que o favorece, leva-nos a concluir que o fascismo não desapareceu com o fim da guerra. A crise moral, a estupidez organizada,o embrutecimento, a trivialidade, tudo isto contribui para um clima propício ao regresso do fascismo.
                Esta colocação do fascismo no âmbito da crise dos valores e da cultura leva-nos a ter que reconhecer a importância duma educação humanista que cultive nos indivíduos, desde muito cedo, os sentimentos de justiça e igualdade, os ideais da beleza e da harmonia, o compromisso com a responsabilidade e a solidariedade para com o nosso semelhante. Nesse sentido, o papel da filosofia na educação dos jovens poderá sair reforçado, na medida em que contribui para o desenvolvimento duma atitude cidadã e crítica, apoiada em valores espirituais que constituem, afinal, o nosso próprio património civilizacional.


[1] Rob Riemen, O Eterno Retorno do Fascismo, Lisboa, Editorial Bizâncio, 2017 (2ª ed.), 78 pp.
[2] Ver entrevista a Rob Riemen aqui.


sábado, 18 de agosto de 2018

Quando o sol


Temos que ir.
Como se o mundo acabasse
Numa tarde de facas e
Sol que nunca mais finda
A pino.

Oiço as paredes
A cal branca das paredes
e a memória das cigarras em guerra.

A água corre?
Rumorosos regatos recordam-me
Tardes. É assim que cresço
Entre essa lembrança e a dor
De dias. A casa abate-se sobre mim
E sobre o meu desejo cresce um corpo
Que ainda não sei até onde vai.

Se consigo escrever é porque desfaleço
Nas palavras que não consigo dizer.
Odeio as letras que me faltam, porque
Há um excesso. Nas borbulhas do corpo, nas
Minhas mãos. Em tudo o que dói e sangra e
Se recorta da brancura dos lençóis.
Amo e no entanto percorro os dias
Infeliz. Deliciosa tortura esta
Feita de tesouras, musgo e pele.

O teu cheiro eterno persegue-me
Como se fosse uma sentença, uma prisão
Para sempre. Vá para onde for, persegue-me o teu cheiro
E as tuas mãos, e o teu olhar de mar
E outras coisas que eu sei que aparecerão sempre
Por mais que fuja e me afaste.

És assim a mais terrível emboscada.
Terrível, até quando te ris.

E é pela tua calma indizível
Que vai caindo a tarde e
o Sol esmorece
Cansado.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Quando os teus olhos fecham é noite


De ti para mim o vento corre

Com os inacessíveis segredos
E as histórias onde percorre
O teu corpo os meus dedos.

Os ventos é que acedem
Por entre corredores à fortaleza do bem-amado
É a eles que os lábios pedem
A memória de cada centímetro esquadrinhado.

Estranho e máximo conhecimento
Em cada pêlo a sua marca
Aí se guarda em cada um a sua Babel
Cuja torre toda a história abarca.

Pelos teus olhos passa agora um laranjal
Reclamado ávido p’la m’nha sede
Pois seus frutos e carne me refrescam
As lembranças feitas duma rede
Para os peixes que no vento pescam

E adormecem quando luzes soam
No pintado céu de papel
Peixes que no vento voam
Enganados p’lo mar da tua pele.


(Sesimbra, 2009)

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Os mexilhões são sempre os mesmos

Sempre que acontece um desastre nacional, descobre-se que alguém ignorou os avisos  da sua eventualidade, esqueceu na gaveta os estudos e os relatórios que permitiriam a compreensão antecipada da situação; sempre que ocorre um desastre nacional, descobre-se que há mortes e feridos que podiam ter sido evitados e não deviam ser agora chorados. Sempre que há um desastre nacional descobre-se que há sempre alguém que lucrou com isso, houve luvas, e ao mesmo tempo vai passeando incólume e sem remorso e até é capaz de fazer coro com os ofendidos, alimentando a tragédia. Sempre que acontece um desastre nacional, aparece sempre alguém apontando um dedo acusador, descobrindo-se depois que afinal também cometeu no passado os mesmos erros e ocultando as mesmas práticas negligentes e que os atuais pecadores estiveram afinal do lado da acusação de então e que todos, pecadores e acusadores, sempre que acontece um desastre nacional dançam as mesmas músicas que sabem tocar sem pauta, porque a melodia está-lhes na massa do sangue. Sempre que ocorre um desastre nacional, sabemos que estamos em Portugal e que os mexilhões são sempre os mesmos, iludidos e adormecidos pelas melodias de sempre do nosso descontentamento.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Números que impressionam ou como a Europa esquece o seu passado


Vejamos outros números impressionantes: durante um século, entre 1815 e 1914, 55 milhões de europeus, donde perto de metade, isto é, 21 milhões, de 1871 a 1901, atravessaram os mares, naquilo que se pode considerar a maior vaga de emigração da história[1].
Perante estes números, como classificar a atitude de alguns dirigentes europeus face à emigração?


[1] Cf. Albert JOURCIN, Prologue à notre siècle 1871-1918, Paris, Larousse, 1968, p. 53.