sábado, 10 de fevereiro de 2018

O mínimo tempo do olhar

A pouco e pouco esquecemo-nos dos pormenores dum rosto, das suas particularidades mais notáveis, dos sinais, mesmo os mais invulgares. O rosto torna-se um mapa confuso até se transformar num apressado caldo de sensações. É por isso que o apaixonado, na incandescência do seu amor mais recente, tem dificuldade em se lembrar do seu rosto, quando à noite se esforça por recordá-lo, para que ele entre no seu sonho a seguir. Que irritante se torna termos ali o rosto do outro quase à mão de semear, como um nome à ponta de língua e não nos conseguimos lembrar. O rosto do outro ganha quase a dimensão do fantasma, de algo nebuloso, mas etéreo. Mas não esquecemos a profundidade de um olhar, o modo como o olhar nos olha, a maneira como nos sentimos olhados e nos acabamos por ver através do olhar do outro. Jorge recorda o olhar intenso de Luísa, um dia à noite na marginal, cada um dentro do seu carro, parados nos semáforos, os dois carros à distância mínima, como bólides à espera da bandeira da partida, acelerando nervosos, motores inquietos. Nesse momento sentiram ao vivo como o olhar hipnotiza os amantes, os torna incapazes de qualquer gesto, os imobiliza no auge do fascínio. À maneira da serpente. Não estavam imóveis: estavam docemente paralisados pelo olhar do outro, suspensos no tempo. Nenhum deles tinha vontade de quebrar esse encanto. Estátuas para a eternidade. Também é verdade que, naquele momento, cumpriam uma parte do seu destino: o de, no momento em que se encontram, apartarem-se por completo dos outros e das coisas e apenas celebrarem o seu espaço, o ambiente que, laboriosamente, com muito cuidado, vão construindo. Como estátuas, olhando-se, apenas escutavam o bater feliz do coração. Apenas existiam um para o outro. Aquela mulher era o seu melhor cenário, de sempre. Tomara ele tornar-se num jardim para a receber.

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