segunda-feira, 22 de maio de 2017

O Nilo regozija-se


Oh Egípcios

Tereis de repetir todos os anos
Eternamente
A agrimensura dos vossos campos
Enquanto eu transbordar com as chuvas
E não me sustendo no meu leito
Vir-me 
embriagado
Invadindo as vossas 
cuidadas culturas.

sábado, 13 de maio de 2017

O arquivo morto

Os portugueses usam uma expressão interessante quando se referem a alguém que, continuando ligado à empresa ou instituição, passou a não exercer nenhuma tarefa, ficando o dia todo quieto a um canto, esquecido. Diz-se, nesse caso, que foi posto na prateleira. Nas escolas, quando algum professor era vítima de doença que o limitava no exercício das suas funções, deixava de poder lidar com os alunos. A sua incapacidade fazia com que não pudesse continuar a dar aulas sem, no entanto, passar à situação de aposentação por invalidez. Nestes casos, a direcção da escola costumava retirar-lhe as turmas, embora o que se passasse, efetivamente, é que ele é que era retirado às turmas. Este professor correria o risco de ir parar à prateleira, não fosse a direcção das escolas ter a luminosa ideia de o colocar na biblioteca da escola. Na grande maioria das escolas era esta a saída para o problema. Uma solução para o infausto professor, não para a biblioteca. Esta podia ganhar pouco com este novo colaborador, mas a "solução" também revelava o entendimento muito difundido sobre o papel das bibliotecas escolares. O professor estava incapacitado, mas como se partia do princípio que ninguém ía à biblioteca e que o professor que aí estivesse fica sossegadinho e apenas se limitava a bocejar e a vigiar o voo dos livros, então a biblioteca podia ser esse lugar de exílio. Ou melhor, atendendo ao caráter "terapêutico" do desfecho, podia encarar-se a estadia na biblioteca como uma ida para as termas.
Mas estes procedimentos não aconteciam apenas com docentes que apresentassem uma situação clínica que desaconselhava a continuação da atividade docente e, por isso, íam parar à biblioteca.

Em 2010, aconteceu o caso duma jovem professora de Mirandela que posou nua para a Playboy. O escândalo, imediata e amplamente divulgado na imprensa e nas redes sociais, exigiu uma rápida resposta da administração educativa. Com efeito, foram-lhe retiradas as turmas e, deste modo, lá foi parar à prateleira. Só que não podia ir parar à biblioteca, pois temia-se o contacto da ousada docente com as almas puras e ingénuas dos meninos. Neste caso, optou-se por esconder a professora no arquivo municipal, onde não deveria contactar com o público e poderia ganhar alguma alergia na pele, por causa do pó dos canhenhos e das actas nunicipais, o que seria uma espécie de castigo divino. Ora, longe da vista, longe da tentação. O arquivo municipal não é lugar que se frequente, mas onde se deposita aquilo que já não interessa. Não era o caso da professora, bem pelo contrário. Mas ao "arquivar-se" a professora, arquivava-se o problema, arrumava-se a questão. É essa a função das prateleiras e do arquivo morto: continuando tudo desarrumado, fica tudo arrumadinho.
(As coisas e as palavras)

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Tentar saber o que é a Filosofia é o primeiro problema da Filosofia

Há muita gente a falar da Filosofia. É como se tivesse aberto um bar novo onde se podia ir conversar e ouvir música desconhecida, alternativa e muito fixe.
Fomos convidados pelos profe para o primeiro problema da Filosofia que é saber o que é a Filosofia. Passámos a aula a mandar bitaites sobre o que era a Filosofia. Cada um mandava a sua boca, rimo-nos muito, foi divertido. É ótimo atirar palavras para o ar sem ter que pensar nelas antecipadamente. Quem quiser que as agarre depois, se bem que eu gostava que fosse a Paula a apanhar uns versos que escrevi ontem à noite, quando estava na cama e não conseguia adormecer!... Claro que não vou reproduzi-los aqui, porque só conhecendo a musa inspiradora é que estaria apto para perceber aquelas palavras.
Mas voltando aos disparates da aula de Filosofia. O que nos valeu foi o profe dizer que qualquer coisa que disséssemos estava sempre certa, tinha que ser aceite, mesmo o maior disparate. Ora, na nossa turma, disparates é coisa que não falta. Mesmo alguns colegas da turma são eles próprios uns disparates em figura de gente. Todos os disparates valem em Filosofia, porque todos têm direito à palavra! A partir daí instalou-se a bagunça geral, com cada um a emitir a opinião mais maluca que lhe viesse a cabeça. O professor estava contente e nós nem demos pelo tempo passar. É ótimo haver uma disciplina onde cada um tem oportunidade de dizer o que lhe vem à cabeça, pois estamos na idade em que a nossa cabeça mais parece um rio desvairado, uma bicla sem travões.
(Do texto em desenvolvimento, Borbulh@s e Heraclito - diário de um estudante de Filosofia)

terça-feira, 9 de maio de 2017

Cada macaco no seu galho

Numa das minhas aulas em que falava aos alunos sobre a verdade e o discernimento, ilustrei o que estava a dizer com um dito da linguagem quotidiana: "cada macaco no seu galho".  A verdade e a busca da verdade obedeceriam a esse lema. A verdade implica discernir, recortar a imagem do confuso amontoado de representações, estabelecer e destacar a nitidez única de cada objeto. Cada macaco no seu galho para superar a confusão, a indistinção. Desse modo obteremos uma representação verdadeira. Mais ou menos. O que procura esse dito? Que não haja dois macacos ou mais num único galho, que estejam, por isso, bem distribuídos, porque possivelmente essa é a melhor maneira de a árvore segurar os macacos e se evitar a confusão que resultaria duma distribuição aleatória dos macacos na árvore. A verdade é também uma maneira de eliminar a confusão. Na altura, reparei que essa era também a melhor maneira de promover a paz entre os macacos. Isso queria dizer, que a verdade era necessária para a paz social, que não podia haver concórdia sem verdade. Ou, dito de outro modo, não há paz entre os homens sem verdade, sem transparência. Se cada macaco estiver no seu galho, sabemos quem é que se pendura nos galhos superiores, quem é que quer ascender na árvore. Assim, evita-se que existam macacos que simulem desinteresse pelos lugares que ocupam, na exata proporção da sua pérfida ambição, espreitando uma oportunidade para, calcando no seu parceiro, elevarem-se nos galhos da árvore ou empurrarem o seu parceiro do lado, distraído com a visão confusa dos macacos amontoados sem regra.
(Da série As coisas e as palavras)

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Gipsy, um pequeno cão e o liberalismo político

Gipsy veio parar à nossa matilha, depois de sofrer maus tratos no bairro onde a Filipa dava aulas. Trata-se dum pequeno cão, arraçado de pinscher miniatura. Era um cão que nunca seria previsível que viéssemos a adotar. No entanto, a sua persistência em aparecer todos os dias na escola da minha mulher, entrando na sala de aulas, onde se deitava num canto adormecendo e só saindo para o intervalo, acompanhando os alunos que brincavam com ele como também lhe davam pontapés, tornou-o num cão especial e a precisar de sair urgentemente daquele bairro, já que vivia na rua onde era um sério candidato a ser atropelado. Além disso, viver na rua, sujeito ao frio e à chuva, aumentava ainda mais a sua fragilidade.
Quando veio para nossa casa, rapidamente conquistou o nosso amor, começando a relacionar-se perfeitamente com o Gorki e o Gaudí. Rapidamente aumentou de peso e enternecia-nos o modo como se aninhava no sofá e adormecia: eram as primeiras noites dormidas com conforto e em segurança.
Na mesma altura, apresentava aos meus alunos as propostas ético-políticas de John Rawls (1921-2002), concretamente, aquelas que o filósofo norte-americano defendera na sua principal obra, Uma Teoria da Justiça. Segundo aquele professor de filosofia política da Universidade de Harvard, a liberdade e o direito à liberdade não podem ser diminuídos em nome da obtenção de qualquer forma de bem-estar.
Segundo Rawls, a liberdade (como a justiça) não entra no cálculo dos interesses sociais. A história do século XX está cheia de exemplos de projetos políticos em que as liberdades dos cidadãos foram sacrificadas em nome duma mais justa distribuição dos rendimentos e dum mais igual acesso a vários bens sociais.
Foi nesse momento que a situação do Gipsy resvalou para o centro das minhas preocupações. É que o Gipsy vivia naquele bairro em absoluta liberdade. Não tinha dono, nem coleira, nem horários, nem obedecia a qualquer ordem. Quando veio para a nossa casa, começou, pela primeira vez ao fim do seu ano e pouco de vida, a usar uma coleira. Quando o passeávamos, ía ao lado dos outros e seguia as orientações dos seus donos. Subitamente, a partir da minha reflexão e das minhas aulas sobre Rawls, surgiu uma questão incomodativa: seria que o Gipsy não preferiria a sua vida anterior, em plena liberdade, a ter regras, um espaço limitado e irmãos com que partilhar e limitar o seu instinto? Se ele pudesse escolher, teria optado pela liberdade e recusado a segurança e o bem-estar?
lguns dos meus alunos, confrontados com esta questão, responderam que o amor que ele recebia agora compensava a perda de liberdade. O amor... Os meus adolescentes alunos ainda são capazes dessa generosa resposta. Por outro lado, também era verdade que o comportamento do Gipsy, no dia-a-dia, parecia revelar um constante agradecimento. Mas isso podia ser um efeito do nosso olhar, a nossa boa consciência a aliviar a nossa preocupação, a legitimar as nossas decisões.

Não sei ainda como responder seguramente àquelas perguntas. O pequeno Gipsy conseguiu levar-me a uma questão fundamental da filosofia política. De certeza que também me vai levar a procurar outras alternativas ao liberalismo político de Rawls.
(Da série Os meus cães e eu)