Os homens não se medem aos palmos. Medem-se do nariz para
cima. O tamanho de alguém não nos diz nada sobre a sua dimensão moral e
intelectual. A estatura dum indivíduo não se mede com uma fita métrica. Ora, o
que aqui se diz sobre os seres humanos é também válido para os cães. E quem
conhecer o Gipsy só poderá confirmar esta tese.
O Gipsy (nome atual) veio viver connosco há coisa de uns
quatro meses. É um minúsculo rafeiro, aparentado de pinscher, já com um ano,
que estava abandonado, mas aparecia todos os dias na escola da minha mulher, no
Bairro da Encarnação, lá para os lados dos Olivais. Acompanhando as crianças
que vinham para a escola, no início nem deixava que qualquer adulto dele se
aproximasse. Sempre seguindo os miúdos, acabava por entrar na sala de aula e aí
ficava, dormitando, junto da secretária da professora. Apenas saía com os
alunos quando tocava a campainha para o recreio e regressava com eles, voltando
a enrolar-se no mesmo canto. Não incomodava ninguém, passava despercebido.
O Gipsy, que na altura não era ainda assim chamado, não
tinha dono. Seguia as crianças para todo o lado, apesar de o tratarem mal, com
as sua brincadeiras mais violentas: davam-lhe pontapés, atiravam-lhe pedras,
jogavam futebol com ele como se ele fosse uma bola. Mas nem por isso, o
cãozinho deixava de os seguir saindo com eles ao fim do dia. Ía depois atrás
deles, percorrendo todas as ruas do bairro. As famílias davam-lhe restos do
jantar, que ele partilhava com outros cãezinhos do bairro. Quando a ementa não
era suficiente, o Gipsy tratava de ir à caça de pássaros e ratos, confirmando
os seus dotes de caçador e que nós, mais tarde, pudemos observar. O Gipsy
enfiava-se em todos os recantos, desaparecia no fundo de qualquer balseiro,
trepava pelo tronco das árvores. À noite, dormia com os outros cães, numa
garagem abandonada, não conseguindo evitar os rigores do último inverno que
tinha sido invulgarmente frio e chuvoso. Talvez por isso Gipsy não
desperdiçasse o inesperado conforto dquela sala de aulas, mesmo que, ao mesmo
tempo, fosse alvo das sevícias dos miúdos mais cruéis.
Em casa, já tínhamos conversado sobre o cãozinho abandonado
e que era tão maltratado pelos garotos. Só que nós tínhamos já dois cães, Gorki
e Gaudí, cujo início de vida também não decorrera da melhor maneira. Ao fim de
quase dois anos eram agora dois enormes cães, muito dóceis e com um excelente relacionamento.
A situação do Gipsy não nos era indiferente, mas tínhamos as nossas limitações
e os nossos limites. Felizmente, o coração conhece outros limites e o amor não
deve conhecer barreiras.
A minha mulher já tinha repreendido, por várias vezes, os miúdos
que tratavam mal o Gipsy. Muitos deles eram seus alunos, sendo que alguns deles
diziam que o cão não se importava, que era tudo brincadeira. Mas também os
tinha avisado que, se não parassem com os maus tratos, um dia iria levá-lo e
deixariam de o ver.
Algumas das boas decisões da nossa vida são tomadas por
impulso, sem pensar nas consequências. Dizia o Torga que se soubesse que ía
levar uma bofetada do pai da rapariga, nunca lhe tinha roubado um beijo. À
rapariga, claro. O excesso de pensamento também pode ser paralisante. Ora, os
garotos continuaram a ser violentos para com o pequenino cão e a Filipa acabou
por trazê-lo para nossa casa!
A intenção era tratar dele, dar-lhe um banho, levá-lo ao
veterinário e vaciná-lo. Depois se veria o que a seguir iria acontecer, não
estando excluída a hipótese que seria colocá-lo num abrigo para adoção.
Obviamente, iríamos tentar que alguém do nosso círculo de conhecimentos o
acolhesse.
Só que o putativo hóspede provisório imediatamente
conquistou o nosso coração. A sua disponibilidade e entrega e a sensação de que
estava imensamente agradecido por, pela primeira vez, poder dormir uma noite
confortável e em segurança, foram determinantes. Por outro lado, imediatamente
interagiu com o Gorki e o Gaudí e era evidente que todos se íam dar bem!...
Nunca tínhamos pensado em ter um cão tão pequeno. Aliás,
devo confessar que sempre achara esses cãezinhos pequenitos, uns seres
irritantes, que existiam no colo das senhoras menopausicas, como mais um
adereço ou apareciam nas casas dessas senhoras ao lado dos napperons junto da
televisão, como mais um elemento decorativo a condizer com o carpélio das
alcatifas nas traseiras dos carros, rivalizando com os canitos de plástico que
aí estão a acenar constantemente a cabeça. Só que este canito parecia ser completamente
diferente da imagem que, preconceituosamente, se formara no meu espírito. Era,
ou pelo menos parecia ser, especialmente inteligente, aprendendo depressa, que
constantemente queria agradar aos adultos.
Ora, o primeiro passo dado no sentido do Gipsy ficar definitivamente
connosco foi a sua mudança de nome. Deixou de ser o Dark ou Darkie como era
chamado pelos garotos para passar a ser o Gipsy, em referência à etnia
dominante na escola que ele "frequentava".
Um nome novo funcionava aqui como a consagração do início
duma nova vida e duma nova história. Ao ser "batizado", estávamos a
admitir o seu nascimento (ou renascimento). Tudo sob a supervisão duns
improváveis padrinhos que nunca teriam admitido receber na sua casa um cãozinho
tão ínfimo e que sempre tinham parodiado apelidando-os de cães a pilhas...
Só que, como afirmei no início, o tamanho é um acidente
meramente biológico. O que verdadeiramente conta é o que cada um faz com o
tamanho que lhe calhou, como se adapta a esse acaso e, com ele, constrói uma
identidade e uma história próprias. E
este Gipsy, ao fim destes poucos meses, já provou, que os cães não se medem aos
palmos, que cada um é como é, e ele também acaba por ser um indivíduo com
personalidade, muito estilo e afetuoso. Por isso, olhando para aquele cãozinho
de palmo, que me olha intrigado por vezes, desafiante outras, só posso exclamar:
ah, grande Gipsy!...
Os textos também não se medem aos palmos. Também eu fiquei a gostar do Gipsy
ResponderEliminarOs textos também não se medem aos palmos. Até eu fiquei a gostar do Gipsy
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