terça-feira, 25 de julho de 2017

Heraclito e Marx

Achei fascinante o Heraclito. Estou a pensar tornar-me discípulo de Heraclito nas discussões lá em
casa. Isto para além de me dar muito gozo ser o obscuro para despachar o meu irmão mais novo. A ver se ele desiste de me chatear.
À mesa, o tema recorrente do momento: o meu pai continua desempregado. Comentei a situação: tudo muda, portanto, também a tua situação vai mudar, disse ao meu pai. Este perguntou-me: para melhor ou para pior? Não soube o que responder, o Heraclito não se pronuncia sobre isso. O meu pai reparou no meu silêncio embaraçado. Deu-me uma palmada nas costas e declarou: para a minha situação de vítima do sistema capitalista, é melhor ler o Marx!
Eu não deixei que ele ficasse a saber que eu não sabia quem era o Marx. A seguir ao jantar procurei o tal Marx na Internet.
Já sei o que vai acontecer e acho que a minha mãe não vai gostar nada: o meu pai vai deixar crescer a barba até à barriga!...
(Borbulh@s e Heraclito - diário de um estudante de Filosofia)

Os meus cães e os dilemas da democracia

Sempre que passeio os meus cães, tento fazer justiça à ideia de passeio, de deambulação.
Não nos dirigimos a lado nenhum em especial, apenas passeamos, disfrutamos o passeio, apreciamos as vistas. O problema é que, tratando-se de um trio ou de um quarteto, as coisas não são assim tão fáceis.
O Gorki gosta de flores, o Gaudí procura pauzinhos, o Gipsy anda sempre à cata de pássaros e a Gaia protege o dono. Cada um persegue o seu foco de interesses. E, no caso, alguns interesses são mesmo obsessões. Mal deixamos a porta de casa, cada um quer seguir o seu caminho. Tento satisfazer todos, mas rapidamente, puxando cada um de acordo com o seu foco, se instala a confusão e, depois, o impasse. O meu desejo de satisfazer todos, gera a insatisfação geral. De tolerante ansioso passo a pequeno ditador irritado. As minhas ilusões inciais redundam em fracasso e deceção. (Mas, onde é que eu já vi isto?) Contudo, este aparente fracasso encontrou, felizmente, solução junto dos meus cãezinhos, concretamente junto do Gorki, o nosso cão que veio para nossa casa um ano após a morte da Lua.
O Gorki não é um cão agressivo, mas antes um cão muito calmo e pacífico. Porém, porque foi o primeiro a chegar, tem tratado de explicar muito bem a todos os que foram chegando, quem é que ele era, que existia um progressivo espírito de matilha, que uma matilha não é um rebanho; mostrou aos outros todos os espaços da casa, fazendo questão de acompanhar com uma rosnadela, a distinção entre o que era público e o que era privado. O que era de todos e o que apenas a ele pertencia. Gorki clarificou desde o início perante os outros que era ele quem mandava, que era ele quem devia ser seguido.
Estou sempre a aprender com os meus cães e encontrar com eles as melhores soluções para alguns problemas do dia-a-dia. Perante os meus impasses e hesitações quando passeamos e quero agradar a todos, optei por entregar ao Gorki a tarefa de dirigir a matilha e decidi também começar a seguir o Gorki e a sua incontestada liderança, continuando, deste modo, enquanto passeio pelas ruas de Benfica, atormentado com os dilemas da democracia e da tolerância multicultural. 

sexta-feira, 14 de julho de 2017

O porquinho Reboredo queria uma vida nova

O porquinho Reboredo vivia com os seus pais e os seus irmãos numa quinta do Alentejo. Desde muito cedo que se revelara diferente dos irmãos. Até se podia dizer que era diferente da maioria dos porquinhos da sua idade. Desde muito novo que fazia perguntas à mãe porca sobre a sua origem. Queria saber donde vínhamos e por mais que mãe porca lhe dissesse que cada filho vem da sua mãe e cada mãe vem da sua mãe e que é assim e sempre assim, recuando cada vez mais, Reboredo não ficava contente com a resposta. Reboredo sabia que isso levava-nos a um primeiro porco, um porco que teria começado tudo, um porco pai e mãe de todos os porcos do mundo. Ora, e antes do primeiro porco? Aí, a mãe de Reboredo era levada a reconhecer que era incapaz de lhe responder e satisfazer a sua curiosidade sempre insatisfeita.
Mas seria curiosidade ou ambição, interrogava-se o pai de Reboredo, quando reparava no olhar e comportamento do filho.
Com efeito, havia outras questões que preocupavam o nosso herói e que o distinguiam dos demais. Reboredo olhava em seu redor e não se conformava com o que via: os seus irmãos chafurdavam na pocilga, disputando entre si as maminhas da mãe que, todos os dias, à hora certa, ficavam disponíveis para o pequeno-almoço dos porquinhos. Quem não as alcançasse ficava sem pequeno-almoço. Esta luta na lama acontecia todos os dias. E só a fome e o desejo muito forte de alcançar o alimento os levava a esquecer, por momento, a compostura e cheiro imundo da pocilga. Não, não era este o futuro que Reborde desejava para si.
E o pior aconteceu quando no espírito de Reboredo deflagraram interrogações sobre o futuro, sobre o seu futuro. Reboredo tinha visto imagens perturbantes numa enciclopédia juvenil. Eram imagens do interior duma charcutaria. Por detrás do balcão, o gorducho dono, careca, envergando uma bata branca, cofiava os seus longos bigodes com uma mão, enquanto a outra empunhava um chouriço; com um sorriso a toda a largura da sua redonda e vermelhusca cara anunciava a qualidade dos seus produtos. Os seus, ou melhor, os do porco. E enumerava a longa lista do que ele apelidava de iguarias divinas: presunto, fiambre da perna, paio, salpicão, lombo fumado, mortadela com e sem azeitonas e por aí fora. Reboredo desconhecia aqueles produtos, mas estava horrorizado: algo lhe dizia que estava ali, em destaque, o seu destino!
Em vão Reboredo interrogou os seus pais sobre o real significado de tudo aquilo. Era assim o seu futuro, nada mais que o desfile de iguarias divinas, perguntava. Mas do outro não lhe surgiam respostas. Tudo aquilo causava-lhe uma enorme angústia. Angústia e revolta com aqueles enchidos apresentados como iguarias divinas! O que é que Deus tinha a ver com tudo aquilo? Seria que Deus não só concordava com tudo aquilo como apoiava e sancionava todo o fabrico de derivados de porco? Será que Deus também colaborava com o dono da charcutaria a fazer a montra do estabelecimento?
Ao mesmo tempo, Reboredo não compreendia os seus irmãos. Como era possível continuarem indiferentes a tudo? Como era possível continuarem sem preocupações?
Mesmo não passando de um pequeno porquinho, que também era, no meio, designado por leitão, Reboredo não se conformava com a sua situação; Reboredo era um ser insatisfeito, queria uma vida mais digna que a que lhe tinham dado. Por isso, podia-se dizer que Reboredo era um ser insatisfeito e revoltado. Era por isso que não respondia quando os seus irmãos o convidavam para brincar. «Quem? Eu?... Eu, Reboredo, a brincar nessa imundície?... Vocês estão-me a ver nessas brincadeiras estúpidas e, ainda por cima, a ficar a cheirar pessimamente, a ficar mais porco do que era?» E abanava a cabeça, desinteressado.
O irmão mais velho, Rómulo de seu nome, tentava convencê-lo. «Olha lá, Reboredo, o que é que tem vires brincar connosco aqui na pocilga? Qual é o problema de ficares sujo e porco, se mesmo que venhas a ser, como todos, um grande porco não passas de um pequeno porco, dalguém que não passa de um porco?»
Reboredo erguia os seus olhos sonhadores em direção ao céu, como se o irmão não estivesse ali. E respondia-lhe de forma intrigante. «Eu não sou um porco como vocês… Eu estou destinado a outros voos…»
Rómulo não estava a perceber muito bem. Seria que tinha ouvido bem? «Tu queres voar? Queres ser um porco voador? Achas que as tuas grandes orelhas poderão alguma vez funcionar como se fossem asas dum avião?...»
Reboredo encarou o irmão. «Não percebeste mesmo nada! Pobre irmão... A tua vidinha na pocilga impede-te de ver mais longe e mais alto. É evidente que não pretendo ser voador ou piloto de aviões. Quando falo de outros voos, estou a falar dum destino diferente, dum futuro longe daqui. Eu não vou ser como vocês. Um dia, no futuro, perceberás melhor. Nessa altura invejarás a minha situação, oh, se invejarás!...» E despediu-se com uma gargalhada que deixou o irmão boquiaberto.
Os pais de Reboredo também não escondiam a sua preocupação com o seu filhote, mas não sabiam o que fazer. A única possibilidade era consultarem Sócrates, o mocho, de quem se dizia que era muito inteligente, sagaz e capaz de encontrar qualquer resposta para qualquer problema. Expuseram-lhe a situação.
«O nosso filho é um ser revoltado, percebes, mocho?»
«Claro que percebo. Por quem me tomam?... Há muitos assim. É bom querer ser diferente, mas não é isso que se passa com o vosso filho. Não admite ser como é, mas quer ser o que nunca poderá ser.»
Os pais de Reboredo trocaram olhares entre si. «E então?...», quiseram saber.
Sócrates, fechou os olhos e concentrou-se. Por fim, proferiu a sua sentença.
«Prevejo um fim trágico para o vosso filho. A sua ambição desmedida vai-lhe sair muito caro, quer dizer, muito barato…»
«Bem, vai-lhe sair caro ou barato?», perguntou a mãe porca.
«Vai-lhe sair barato. Mas caro…» E voltou a fechar os olhos, como que adormecendo profundamente. Era o sinal que a consulta tinha chegado ao fim. Os pais de Reboredo pagaram a consulta, tinha sido um pouco cara, e afastaram-se do mocho, desconsolados. Já lhe tinham dito que o mocho se pronunciava por enigmas, que só mais tarde é que revelavam o seu verdadeiro significado. Não valia a pena quererem uma resposta imediata. O mocho nunca se comprometia, talvez tivesse futuro na política.
Continuavam sem saber o que fazer. Na história da pocilga não havia nenhuma história semelhante. Todos os jovens porquinhos tinham aceite pacificamente a sua situação e o seu destino. Regressaram em silêncio preocupados, muito preocupados.
Quando chegaram a casa, ao fim do dia, os pais porcos ficaram alarmados. O porquinho Reboredo tinha saído logo de manhã e ainda não regressara! Será que lhe tinha acontecido alguma coisa?... Por onde é que ele andaria?... Já era tão tarde…
E mais aflitos ficaram quando descobriram que Reboredo tinha feito uma mala de roupa e pegado no mealheiro com as economias de todos os irmãos porquinhos. Remo, o irmão do meio, estava desconsolado, ao encontrar os cacos do mealheiro espalhados no chão. «O Reboredo levou todos os nossos trocos!... Não é justo, as moedas também nos pertenciam!...»
Os pais porcos não sabiam o que dizer. Já tinham percebido tudo ou quase tudo. Reboredo tinha ido embora. Deixara-lhes um papel, explicando isso mesmo.
«Queridos Pais e Irmãos: vou-me embora! Não suporta mais viver assim, na pocilga suja e mal-cheirosa. Quero outra vida, mesmo que isso signifique outra casa e outra gente à minha volta. Ainda pensei num futuro nas telenovelas ou na política, mas não. Há mais realidade para além disso. Talvez regresse um dia, a conduzir um Mercedes ou mesmo com motorista. Para já imagino-me a ser levado em ombros, a ser servido e aclamado..»
*
Uma das vantagens das histórias é que o leitor sabe sempre mais cedo que os personagens. Neste caso, vamos ficar a saber o que é que aconteceu a Reboredo, o que é que ele foi fazer durante o dia, enquanto os seus pais e irmãos choraram a sua partida. Mal eles saberiam que nunca mais iriam ver o irmão. Mas isso só nos saberemos no fim da estória e se aqui levantamos a pontinha do véu é apenas para acalmar a ansiedade dos leitores e atenuar o choque dos mais sensíveis. Adiante.
Pois, foi adiante, caminhando estrada fora e, precisamente mais adiante, que se deu o encontro que iria mudar a sua vida.
Reboredo ía seguindo a estrada. Não conhecia aquela estrada, mas sabia, pelo menos, que todas as estradas vão dar a Roma. Por ele, Roma estava bem. Sendo lá que ficava o Vaticano, podia até esclarecer essa coisa das iguarias divinas que também não lhe saía da cabeça. Com o pensamento fixo no seu objetivo, passo acelerado, Reboredo não perdia tempo a olhar para a paisagem. Aliás, até a achava um pouco monótona. Não fosse uma jovem e bela senhora colocar-se diante dele e Reboredo passaria indiferente à senhora. Mesmo o facto de envergar um vestido de seda azul claro até aos pés (teria pés?...), nem mesmo o facto de se desprender um estranho brilho do seu longo cabelo louro, nem o facto do seu brilho irradiar pequenos reflexos como se os dentes tivessem sido substituídos por diamantes (e não teriam?...), nada disso o teria feito parar. Mas, ao chocar com a senhora, não teve outro remédio senão parar e erguer a cabeça diante do imprevisto obstáculo. Ficou hipnotizado com o que viu. O sorriso da senhora revelava que esta já estava habituada a provocar esse efeito estonteante nos outros. Era um sorriso confiante, próprio de quem sabia de antemão que conseguia alcançar tudo o que desejava (estaria à beira do primeiro fracasso?)
«Desculpe, não... não... não tinha reparado na sua... presença?...» Balbuciou Reboredo, estranhando o facto de não ter conseguido falar sem gaguejar. Nunca lhe tinha acontecido.
«E agora, já reparou?», perguntou a jovem senhora, exibindo um prolongado sorriso. Reboredo tentou recompor-se. Afinal, o mundo para além da pocilga devia ser assim mesmo, habitado por seres belos e extraordinários. Começou a achar que aquele era um bom começo e que devia aproveitar aquela oportunidade. Armou uma resposta condizente com a situação.
«E era possível não reparar?»
«Não sei… foi o jovem que disse que não tinha reparado e que por isso pedia desculpa.» Continuou com o sorriso afivelado. Reboredo percebeu que além de muito bela era esperta. Beleza e inteligência era uma combinação explosiva, concluiu, mas era isso mesmo que procurava. Estava ali a chave para um novo mundo. Não podia desperdiçar a oportunidade que lhe era assim servida. A senhora continuou. «Eu até fiquei, como dizer, um pouco atingida pela sua indiferença.»
Reboredo sacou aquela janela de oportunidade. Tinha atingido a jovem senhora no seu amor próprio, talvez fosse a altura certa para se aproveitar da fragilidade momentânea daquele ser celestial que lhe calhara em sortes. Justificou-se. Apresentou-se. Ganhou terreno.
«Ora, sou apenas um jovem distraído. Ía metido nas minhas reflexões. Um porco também está habilitado para a metafísica…»
A jovem senhora soltou um pequeno grito. Um voluptuoso gritinho, que quase assustava o jovem Reboredo. «Oh!... Ah!... Temos um filósofo!» Parecia deliciada com a ideia. Reboredo não desarmou. Era um filão que fazia parte do seu repertório. Mas convinha ser modesto.
«Um filósofo?... Não! Digamos antes, uma alma inquieta, atormentada…» Reboredo apelava aos instintos maternais da senhora. De facto, nem se importava de ter tido uma mãe assim. Mas repeliu este pensamento. Ainda não tinha passado um dia que se afastara da família e já estava, em pensamento, a trocar de família!... De qualquer modo, no íntimo, era isso mesmo que pretendia.
«Uma alma atormentada? Ouvi bem?...»
«Ouviu bem, sim. Sou uma alma atormentada. Mas o meu nome é Reboredo.»
A senhora aproximou-se, agora que estavam quase apresentados. Com cautela, poisou a mão na cabeça de Reboredo. Este sentiu um arrepio pelo corpo todo. Tinha a certeza que os pelos do corpo se tinham eriçado, mas não tinha como comprovar isso. Do que tinha a certeza era que o seu coração batera descompassado. Estaria já apaixonado?
«Reboredo é um bonito nome. Um nome romântico.» (Novo arrepio; Reboredo não podia perder a cabeça; vamos torcer para que mantenha alguma compostura para que a coisa não lhe corra mal). Felizmente que Reboredo já não sabia o que dizer e a senhora continuou a falar. «Só não percebo é como um jovem já arrasta consigo uma alma atormentada… Será que poderei fazer alguma coisa?»
Neste momento, passou pela cabeça de Reboredo muitas imagens. Havia muito que a jovem senhora poderia fazer por Reboredo, de tal maneira que o nosso herói até estava com dúvidas sobre o que escolher. Afastou as ideias mais pecaminosas e optou por lhe contar o seu verdadeiro problema.
«O que se passa é que não me conformo com a minha situação de porco. Nem com a situação, nem com o presumível destino. Almejo para mim outra coisa…»
«Al… quê?...?», interrompeu a senhora, aparentemente confusa. (con… quê?...)
«Almejo!», esclareceu Reboredo. E retomou o discurso. «Não quero continuar na imunda pocilga, no meio da minha imunda família de porcos!»
A senhora voltou a sorrir. Reboredo devia confessar que não percebia como é que a sua história e aquela revelação sobre a sua imunda família poderia despertar aquele sorriso. Estaria a gozar com ele? A senhora adivinhou-lhe os pensamentos.
«Estás com sorte, Reboredo. Eu sou uma fada madrinha e posso realizar todos os teus sonhos…»
Reboredo nem queria acreditar no que tinha ouvido. Seria possível que aquela mulher deslumbrante, cativante, radiante e assim adiante, pudesse realizar todos os seus desejos?... Reboredo chegou a querer dar um pulo de alegria e beijar a senhora, mas pensou que era melhor refrear os seus gestos. Alguma sobriedade e contenção estavam de acordo com o futuro que desejava. De qualquer modo, era visível o seu contentamento. Recordou ainda os pobres dos seus irmãos a chafurdar na pocilga imunda… Como ele já se sentia tão longe dessa miséria… Como estava prestes a dar o salto, o salto para uma nova vida!…
«E o que é que eu devo fazer, jovem senhora e fada madrinha? O que é que posso ir adiantando?», perguntou o ansioso Reboredo.
A fada madrinha sorriu. Mantinha-se calma, como era próprio duma fada tão poderosa. «Ora, Reboredo, só terás que formular três desejos…»
Reboredo começou imediatamente a pensar nos três desejos. Tinha que os formular de maneira abrangente. Porém, para ele, era tudo muito claro. «O que eu desejo é viver numa casa a sério, entre gente a sério, que reconheça as minhas qualidades e, sobretudo, gostaria de ser servido e aclamado…»
A fada madrinha puxou duma varinha mágica e volteou-a no ar, descrevendo vários arcos, como se desenhasse no ar. Reboredo estava fascinado, pois sabia que as fadas realizavam os desejos com as suas varinhas. Tudo aquilo estava de acordo com o que sabia sobre fadas, sobre fadas boas, isto é, madrinhas.
«Fecha os olhos, Reboredo. Serás servido da melhor maneira e aclamado entre pessoas que gritarão por ti, recebendo-te na sua casa. Assim desejas, pois assim será!» Reboredo, ainda de olhos fechados, antevendo o seu novo futuro, ainda escutou as palavras mágicas da fada, palavras ditas numa língua desconhecida. E não ouviu mais nada. Era a sua entrada no futuro, num amanhã que cantaria, se fosse caso disso. Mas não era. Como veremos.
*
Era uma casa portuguesa, normalíssima. Uma família remediada. Pobre, honesta, trabalhadora, a condizer com a casa que era mais uma casinha. Os seus ocupantes preparavam-se para jantar. Porém, naquela noite tudo seria diferente.
E era por isso que se ouviram gritos de crianças festejando ruidosamente o início da refeição. Como não era hábito. As aclamações de contentamento dos dois irmãos não abafaram as exclamações de satisfação dos adultos. A mãe, à mesa, não escondeu também o seu espanto perante o que estava a acontecer.
Com efeito, o homem da casa, o chefe de família, acabara de entrar na sala erguendo uma enorme travessa fumegante. Pelo aroma que daí se libertava, já todos tinham adivinhado quem enchia a travessa. O seu ocupante, luzidio e estaladiço, vinha enfeitado com uma laranja na boca e ladeado de raminhos de salsa.
A mãe, trinchando a carne e distribuindo generosos nacos pela família, quis saber como é que tudo aquilo tinha sido possível. Numa época de aperto e permanente controlo das despesas, parecia que o marido tinha perdido a cabeça. Eles não tinham dinheiro para u manjar daqueles.
O pai, de garfo e faca em riste, antes de se atirar à vianda, forneceu as explicações devidas.
«Talvez não acreditem, mas quando vinha para casa, ao atravessar o parque, dei de caras com uma jovem e deslumbrante senhora, toda vestida de seda azul claro, de sorriso esplendoroso… Era uma imagem fascinante…»
« Uma jovem senhora?... No parque?...», inquiriu a esposa, desconfiada.
«Ela apresentou-se como sendo uma fada madrinha, pronta para satisfazer-me três desejos.
«Três desejos?... Logo assim, sem te conhecer?»
«Três desejos! Pensei num carro novo, a gasóleo. Obviamente, não me esqueci do meu Sporting: que fosse campeão na próxima época. E como estava cheio de fome, o que me ocorreu imediatamente, foi a imagem dum grande jantar à minha espera. E, para já, a fada realizou um dos meus desejos!»
«A fada dos dentes?...», quis saber o filho mais novo.
O pai riu-se. «Não. Neste caso, quando muito, seria a fada dos leitões!»

E todos se riram, atirando-se a um Reboredo que, longe da vida de pocilga, realizara, finalmente, o seu objetivo de mudar de vida, instalado entre gente a sério, numa casa a sério, servido e aclamado.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Os cães não se medem aos palmos


Os homens não se medem aos palmos. Medem-se do nariz para cima. O tamanho de alguém não nos diz nada sobre a sua dimensão moral e intelectual. A estatura dum indivíduo não se mede com uma fita métrica. Ora, o que aqui se diz sobre os seres humanos é também válido para os cães. E quem conhecer o Gipsy só poderá confirmar esta tese.
O Gipsy (nome atual) veio viver connosco há coisa de uns quatro meses. É um minúsculo rafeiro, aparentado de pinscher, já com um ano, que estava abandonado, mas aparecia todos os dias na escola da minha mulher, no Bairro da Encarnação, lá para os lados dos Olivais. Acompanhando as crianças que vinham para a escola, no início nem deixava que qualquer adulto dele se aproximasse. Sempre seguindo os miúdos, acabava por entrar na sala de aula e aí ficava, dormitando, junto da secretária da professora. Apenas saía com os alunos quando tocava a campainha para o recreio e regressava com eles, voltando a enrolar-se no mesmo canto. Não incomodava ninguém, passava despercebido.
O Gipsy, que na altura não era ainda assim chamado, não tinha dono. Seguia as crianças para todo o lado, apesar de o tratarem mal, com as sua brincadeiras mais violentas: davam-lhe pontapés, atiravam-lhe pedras, jogavam futebol com ele como se ele fosse uma bola. Mas nem por isso, o cãozinho deixava de os seguir saindo com eles ao fim do dia. Ía depois atrás deles, percorrendo todas as ruas do bairro. As famílias davam-lhe restos do jantar, que ele partilhava com outros cãezinhos do bairro. Quando a ementa não era suficiente, o Gipsy tratava de ir à caça de pássaros e ratos, confirmando os seus dotes de caçador e que nós, mais tarde, pudemos observar. O Gipsy enfiava-se em todos os recantos, desaparecia no fundo de qualquer balseiro, trepava pelo tronco das árvores. À noite, dormia com os outros cães, numa garagem abandonada, não conseguindo evitar os rigores do último inverno que tinha sido invulgarmente frio e chuvoso. Talvez por isso Gipsy não desperdiçasse o inesperado conforto dquela sala de aulas, mesmo que, ao mesmo tempo, fosse alvo das sevícias dos miúdos mais cruéis.
Em casa, já tínhamos conversado sobre o cãozinho abandonado e que era tão maltratado pelos garotos. Só que nós tínhamos já dois cães, Gorki e Gaudí, cujo início de vida também não decorrera da melhor maneira. Ao fim de quase dois anos eram agora dois enormes cães, muito dóceis e com um excelente relacionamento. A situação do Gipsy não nos era indiferente, mas tínhamos as nossas limitações e os nossos limites. Felizmente, o coração conhece outros limites e o amor não deve conhecer barreiras.
A minha mulher já tinha repreendido, por várias vezes, os miúdos que tratavam mal o Gipsy. Muitos deles eram seus alunos, sendo que alguns deles diziam que o cão não se importava, que era tudo brincadeira. Mas também os tinha avisado que, se não parassem com os maus tratos, um dia iria levá-lo e deixariam de o ver.
Algumas das boas decisões da nossa vida são tomadas por impulso, sem pensar nas consequências. Dizia o Torga que se soubesse que ía levar uma bofetada do pai da rapariga, nunca lhe tinha roubado um beijo. À rapariga, claro. O excesso de pensamento também pode ser paralisante. Ora, os garotos continuaram a ser violentos para com o pequenino cão e a Filipa acabou por trazê-lo para nossa casa!
A intenção era tratar dele, dar-lhe um banho, levá-lo ao veterinário e vaciná-lo. Depois se veria o que a seguir iria acontecer, não estando excluída a hipótese que seria colocá-lo num abrigo para adoção. Obviamente, iríamos tentar que alguém do nosso círculo de conhecimentos o acolhesse.
Só que o putativo hóspede provisório imediatamente conquistou o nosso coração. A sua disponibilidade e entrega e a sensação de que estava imensamente agradecido por, pela primeira vez, poder dormir uma noite confortável e em segurança, foram determinantes. Por outro lado, imediatamente interagiu com o Gorki e o Gaudí e era evidente que todos se íam dar bem!...
Nunca tínhamos pensado em ter um cão tão pequeno. Aliás, devo confessar que sempre achara esses cãezinhos pequenitos, uns seres irritantes, que existiam no colo das senhoras menopausicas, como mais um adereço ou apareciam nas casas dessas senhoras ao lado dos napperons junto da televisão, como mais um elemento decorativo a condizer com o carpélio das alcatifas nas traseiras dos carros, rivalizando com os canitos de plástico que aí estão a acenar constantemente a cabeça. Só que este canito parecia ser completamente diferente da imagem que, preconceituosamente, se formara no meu espírito. Era, ou pelo menos parecia ser, especialmente inteligente, aprendendo depressa, que constantemente queria agradar aos adultos.
Ora, o primeiro passo dado no sentido do Gipsy ficar definitivamente connosco foi a sua mudança de nome. Deixou de ser o Dark ou Darkie como era chamado pelos garotos para passar a ser o Gipsy, em referência à etnia dominante na escola que ele "frequentava".
Um nome novo funcionava aqui como a consagração do início duma nova vida e duma nova história. Ao ser "batizado", estávamos a admitir o seu nascimento (ou renascimento). Tudo sob a supervisão duns improváveis padrinhos que nunca teriam admitido receber na sua casa um cãozinho tão ínfimo e que sempre tinham parodiado apelidando-os de cães a pilhas...

Só que, como afirmei no início, o tamanho é um acidente meramente biológico. O que verdadeiramente conta é o que cada um faz com o tamanho que lhe calhou, como se adapta a esse acaso e, com ele, constrói uma identidade  e uma história próprias. E este Gipsy, ao fim destes poucos meses, já provou, que os cães não se medem aos palmos, que cada um é como é, e ele também acaba por ser um indivíduo com personalidade, muito estilo e afetuoso. Por isso, olhando para aquele cãozinho de palmo, que me olha intrigado por vezes, desafiante outras, só posso exclamar: ah, grande Gipsy!...

domingo, 2 de julho de 2017

O homem que gostava de caracóis até um certo limite


Sempre gostei de animais, desde muito pequeno. Como, aliás, a maioria das crianças. Desde que me conheço que eu quis ter um cão ou um gato. Porém, os meus pais, com a justificação de que a casa era pequena, sempre me recusaram a concretização desse desejo. Talvez estivessem a ser sinceros com esse motivo, pois na altura acabaram por aceitar que eu criasse bichos-da-seda no meu próprio quarto de dormir. Durante aproximadamente um ano, numa caixa de camisas, tive uma criação dessas lagartinhas que se alimentavam com folhas de amoreira que eu apanhava várias vezes por semana. Num largo perto da minha casa existiam essas árvores e como havia uma verdadeira epidemia na altura à volta da criação dos bichos-da-seda, eu tinha um grupo de miúdos que comigo subiam a essas árvores. Eu não podia deixar esgotar o stock das folhas, pois temia que se isso acontecesse, as lagartas começassem a roer as paredes de cartão do seu pequeno mundo. As lagartinhas, às riscas, devoravam rapidamente as folhas das amoreiras, movendo-se de uma forma muito curiosa. Passadas algumas semanas as lagartas com um fio que segregavam, teciam à sua volta uns pequenos casulos onde se escondiam e acabavam por desaparecer definitivamente. Então, deixavam de ter piada.
Por isso, ao fim de algum tempo, desinteressei-me dos bichos-da-seda. A minha tia Conceição ofereceu-me, algum tempo depois, um porquinho-da-índia. Era maior que um rato, mas mais pequeno que um gato. Chamava-lhe Tito e divertia-me bastante com ele. Andava com ele ao colo para todo o lado, escondido debaixo do casaco, muitas vezes solicitado por todos aqueles que de mim se aproximavam e que, sem medo dos seus olhinhos achinesados, muito vivos, não resistiam à tentação de lhe fazer umas festas. O que me deixava muito orgulhoso. Eu era visto como um menino diferente e especial. Mais ninguém, na rua, tinha um porquinho-da-índia. Além disso, o facto de ser da Índia, dum lugar tão distante, dava-lhe um ar exótico, o que despertava nos outros ainda mais curiosidade sobre o meu bichinho e a razão de ser da minha predileção por porquinhos-da-índia. Conseguir relacionar-me com um ser vivo oriundo dum ponto do globo tão distante, pertencendo a uma cultura tão diferente da ocidental, também me emprestava qualidades especiais. Não sei se na altura não haveria quem pensasse que eu vinha dessas paragens longínquas. Só que a minha pele excessivamente branca colocava-me no sítio certo.
Não tive mais animais. Contudo, sempre que me aproximava dum cão, não perdia a oportunidade para lhe fazer uma festa e pedir uma lambidela. Ou em casa de amigos que tivessem gatos, tentava que eles saltassem para o meu colo, se aninhassem e ambos ronronássemos de prazer.
Já adulto continuei a ser um amigo dos animais. Do ponto de vista cívico, considero-me um empenhado militante a favor dos direitos dos animais. Sou contra as touradas e assino todos os manifestos e abaixo-assinados que surjam nesse sentido. Também já me manifestei em várias ocasiões contra a utilização de animais em experiências laboratoriais. Até o simples transporte dos animais em condições indignas gera a minha revolta. Em suma, ao nível da intervenção cultural e política, considero-me um amigo dos animais. De todos os animais, sejam mamíferos ou aves, os que rastejam ou os que voam, que respiram por pulmões ou por guelras, grandes ou pequenos.
Todos os animais têm direitos e os seus direitos devem ser respeitados. É essa a minha filosofia. Pode haver, contudo, situações cuja complexidade nos conduza a enfrentar direitos que entrem em conflito entre si e cuja nossa decisão e intervenção fiquem paralisados. Situações em que não saibamos o que fazer.

Outro dia, andava a passear por um pequeno jardim, perto da minha casa. Tinha chovido todo o dia e aproveitava naquele momento uma breve aberta. Vinha a calhar bem, pois já estava farto de estar em casa, sem poder sair.
Da terra e da relva molhadas soltava-se um aroma adocicado, sobre o qual toda a gente já escreveu, pelo que fico por aqui. Caminhava devagar para poder aspirar mais intensamente esse cheiro tão agradável. Além disso, observava melhor a natureza renascida. Subitamente, reparei que um caracol tentava atravessar o carreiro por onde caminhava. Conclui rapidamente que aquele caracol corria perigo. Alguém mais distraído que andasse por ali a passear poderia facilmente esmagar o pobre caracol. Por isso, baixei-me e peguei no caracol. Depois coloquei-o cuidadosamente num canteiro, junto de umas folhas caídas. Era um sítio ainda molhado, liso, adequado às movimentações do caracol. Só esperava que ele não voltasse ao nosso caminho. Era muito perigoso. Era como atravessar uma estrada muito movimentada fora da passadeira, mas fazê-lo muito devagar, demorando mais de três horas para chegar ao outro lado. Tratando-se de um animal tão pequeno era muito fácil alguém, sem intenção, pisá-lo.
Todos conhecem a cantilena infantil “Caracol, caracol // Põe os corninhos ao sol”. Parece que o caracol gosta imenso do Sol, mas não é assim. O caracol gosta da humidade, do tempo húmido, da chuva intensa, sobretudo. Quando pára de chover, o caracol aproveita imediatamente essa situação para se deslocar. Depois de chover é que o caracol sai para fora da sua casinha e arrasta-a. Porém, só com o piso molhado é que é possível esta tarefa; com o piso molhado, o caracol faz-se deslizar mais facilmente, a si mais a sua casinha. É por isso que, depois duma chuvada, todos os caracóis como que despertam e movimentam-se.
Foi por essa razão que, uns passos mais adiante, voltei a encontrar outro caracol e na mesma situação. Voltei a pegar nele e depositei-o na relva. Coloquei-o de costas para o caminho de terra, na esperança de que ele, deslocando-se para a frente, se afastasse do perigo. Só que quando me agachei, reparei em mais outro caracol. Desta vez, esperava ter salvo dois caracóis.
Dois metros mais à frente encontrei quatro caracóis. Repeti a operação de salvamento. Não podia deixar de me sentir muito contente com isso. Imaginei que, se os caracóis falassem e eu os pudesse ouvir, me agradeceriam e iriam prometer que não voltariam a atravessar o carreiro dos peões, isto é, dos humanos. Muitas vezes imaginava-me a conversar com formigas, grilos, polvos, caranguejos e caracóis. Se conseguíssemos comunicar, imaginava os mais variados diálogos a propósito dos mais variados assuntos. E interrogava-me sobre o modo como eles nos viam e nos julgavam. Gostava de saber o que estes caracóis comentariam entre eles sobre o que tinha acabado de acontecer e a minha iniciativa. Por outro lado, seria incapaz de ver os pobres caracóis desconhecendo os perigos por que estavam a passar e não ligar.
O chão que piava no jardim era de terra e, depois de horas a chover, estava enlameado em muitos sítios. Talvez isso explicasse porque é que havia tantos caracóis a atravessarem-se no meu caminho! Com efeito, dei mais uns passos e voltei a encontrar mais cinco caracóis que voltei a salvar duma potencial morte horrível. Esta situação voltou a acontecer mais uma série de vezes. Fiz as contas aos caracóis que já tinha salvo: esse número ultrapassava uma centena! Da última vez tinha pegado em oito caracóis, alguns já prestes a alcançar o retângulo de relva do outro canteiro. Felizmente que a chuva tinha afastado as pessoas da rua e, claro, do jardim. Confirmei que não havia ninguém no jardim, o que explicava que não existissem caracóis esmagados por alguém distraído. De qualquer modo, se viesse alguém até ao jardim tinha a certeza que os caracóis que tinha retirado do caminho estavam a salvo. Essa perspetiva dava-me alento para continuar.
Mais uns metros adiante e deparei com doze caracóis. Era o maior número de caracóis que encontrara de uma só vez, no mesmo sítio. Julguei que se poderia tratar de uma família única, completa, a viajar, a mudar de cidade ou a encaminharem-se para uma estância de férias. Uma família extensa: avó e avô, pais e filhos, um tio solteiro, um primo afastado com a sua esposa e dois filhos malcriados, uma tia viúva e a sua fiel empregada. Salvar uma família era mais do que salvar aquela quantidade, já significativa de caracóis. Se no mundo dos caracóis daquele jardim instituíssem um prémio a ser entregue àqueles que se dedicam à causa dos animais era bem provável que viessem ter comigo. Ao pôr a salvo uma família eu estava, lentamente, a entrar no mundo real e organizado dos caracóis, aqueles bichinhos simpáticos que transportam a casa às costas e que, por causa disso, motivam tantos escritos. No mundo dos caracóis eu seria já um amigo especial. Confortado com esta ideia, continuei a procurar no jardim por caracóis distraídos, que se tivessem posto à estrada, sem conseguirem atravessar e abrigarem-se convenientemente nos canteiros mais distantes dos corredores de passagem dos humanos. Avancei mais uns metros e voltei a encontrar mais um pequeno grupo de caracóis. Novamente, voltei a colocá-los a salvo. Entretanto, tinha acabado de reparar que já percorrera todos os caminhos do jardim. A missão estava, assim, concluída. Sentia-me, por isso, feliz. Salvara perto de duas centenas de caracóis!
Nos dias seguintes continuei a pensar nos caracóis que salvara. Alguns deles deviam já ter observado o que acontecia aos caracóis que eram esmagados ou simplesmente pisados. A destruição da sua casca quando não era também a do seu corpo mole e húmido deveria testemunhar um fim agonizante e terrível, quanto era frágil o seu corpinho. Os caracóis que eu salvara só podiam estar agradecidos. Gostava de saber se, entre eles, falariam de mim, referindo-se a uma boa pessoa que passeava no jardim ou a um herói que não procurava a glória, mas apenas fazer o bem, duma forma anónima. Isso tinha todo o sentido. Quem procurasse a glória e o reconhecimento público salvando animais, procurava animais de grande porte, animais em vias de extinção, seres que eram objeto de campanhas internacionais e sobre os quais os meios de comunicação estavam permanentemente atentos. Eu não tinha dúvidas que salvara muitos caracóis, mas não estava a ver nenhuma televisão a procurar-me para uma entrevista onde relataria o que tinha feito. No entanto, se salvasse um cão de morrer afogado ou ajudasse um golfinho, encalhado na areia da praia, a encontrar o caminho de casa, corria um risco de ver a minha vida devassada por algum jornalista que não descansaria enquanto eu não lhe concedesse uma entrevista. Ao salvar um caracol eu não me arriscava a ganhar uma medalha ou a ser recebido pelo presidente da República. Mas a vida dum caracol valia menos que a duma baleia? Ou que a vida dum gato? E a vida de 187 caracóis era menos preciosa que a vida dum gato? E se fizéssemos essa pergunta ao caracol?
Eu não me lembrava de alguma vez na minha vida ter praticado algum ato de heroísmo. Bem, uma vez, tinha onze ou doze anos, passara uma tarde a apanhar maçãs no quintal da vizinha da minha tia Conceição. A vizinha era uma idosa adoentada, que não saía à rua e nunca conseguiria apanhar as maçãs da suas árvores. Elas acabariam por se estragar, pois até já havia algumas com bicho e muitas caídas no chão a apodrecer. Utilizei um escadote e tive que trepar na árvore para alcançar as maçãs que estavam nos ramos mais distantes. À medida que subia na árvore, os ramos eram mais frágeis e cheguei a temer que se pudessem partir com o meu peso. No fim, consegui apanhar todas as maçãs que entreguei à amiga da minha tia. Ela ficou comovida com o meu gesto e confessou até à minha tia que era muito bem capaz de me fazer seu herdeiro. Mas isso só soube depois da senhora morrer e o sobrinho, um advogado que eu nunca vira, rapar tudo o que lá havia em casa, deixando-me apenas um alguidar de plástico e um pano para que eu conseguisse arrancar o papel de parede velho, pois o senhorio não ía gostar. Também soube mais tarde que não havia nenhum senhorio e a casa tinha passado para o sobrinho que tratou de a vender rapidamente. Mas, naquela altura, a amiga da minha tia recebeu os dois sacos de maçãs com um sorriso de satisfação que valeria por si só. Passados três ou quatro dias, a minha tia Conceição telefonou-me irritada, porque eu andara a apanhar as maçãs.
− Mas a macieira não é da sua vizinha? − perguntei.
− Não! – rosnou a tia Conceição.
− Ah…. - desliguei, com o telefone entre as pernas.
Como a vizinha fizera várias tartes de maçã, o cheiro a bolos acabara por despertar a ira do dono da macieira, que vivia no apartamento ao lado e via nas tartes de maçã, feitas com as suas maçãs, a suprema arte do abuso e da insolência.
De qualquer modo, o propósito é que conta e eu fizera tudo aquilo com a melhor das intenções.
 Mas deixemos as maçãs entregues ao seu dono e regressemos aos caracóis. Eu sabia que quando voltasse a chover, muitos daqueles caracóis que salvara, voltariam, inadvertidamente, a atravessar por sítios onde correriam perigo. Eu achava que esses caracóis não procuravam intencionalmente colocar a sua vida em perigo; muitos deles pretendiam apenas melhores sítios para viver, o que era perfeitamente justificável. Não era o que se passava no mundo dos homens? Eu tinha era que estar atento à meteorologia. Os caracóis deviam contar comigo.
Eu andava a auscultar o tempo antes de adormecer. Perscrutava todos os sinais. A lua ía-se escondendo por detrás de sucessivas nuvens que ameaçavam chuva. Ainda pensei em não adormecer naquela noite, mas acabei vencido pelo cansaço.
Quando acordei, o céu estava a começar a clarear. Porém, apercebi-me que tinha chovido como eu temera. Vesti-me rapidamente e dirigi-me para o jardim. Como previ não andava ninguém no jardim àquela hora. Com alguma ansiedade fui olhando para o chão. Até que comecei a ver os primeiros caracóis atravessando o meu caminho. Mudando de canteiro. Fui pegando neles e colocando-os a salvo. Como sempre, esperava que não voltassem a tentar atravessar o caminho de terra por onde todos passávamos. Mas era bem possível que estivessem ali alguns que já o tinham tentado da outra vez. Como no mundo dos seres humanos, havia sempre alguém mais reticente, incapaz de contrariar os seus desejos e projetos, com dificuldade em aprender as lições da vida. Mesmo quando se tratava, como era o caso, de lições fatais. A teimosia é algo de genético.
Foi então que, pela primeira vez, fui assaltado por algumas dúvidas sobre quando é que me poderia libertar daquela missão. Vinha aí o inverno e tudo levava a crer que aqueles caracóis não iriam aprender a lição tão depressa. Além disso, na véspera, tinha passado por uma praceta com um pequeno canteiro central e ficara a matutar na situação dos caracóis que lá residiriam e agendara mentalmente umas passagem por lá. Ora, parecia que não iria ter tempo por agora, o que me deixava angustiado só de pensar nas pequenas vidas eu se iriam perder.
Eu não sabia quantos animais, mesmo minúsculos, poderia ainda salvar. De qualquer modo, quando olhava para um caracol, separado dos seus irmãos, atravessando sozinho à procura de um local melhor para viver, não podia deixar de me sentir tocado pela sua capacidade de iniciativa, pelo seu empreendedorismo, inconsciente dos perigos que corria. O mesmo se passava com pequenos grupos de caracóis. Muito possivelmente tratava-se de pequenos núcleos familiares que, como autênticos pioneiros ou grupos de emigrantes italianos, procuravam uma vida melhor. Essa odisseia, do mesmo modo, despertava em mim os mais puros instintos de solidariedade. Também esses grupos de protagonistas corajosos alimentavam os meus sentimentos altruístas mais profundos. Eu podia ter dúvidas sobre como continuaria a agir no futuro, talvez criasse um grupo de voluntários, que salvassem caracóis em todos os jardins da cidade, mas estes caracóis atuando sozinhos ou em pequenos grupos não podiam ser abandonados. Disso tinha a certeza.
Porém, acabei por deparar com um autêntico exército de caracóis movimentando-se já no limite do jardim, em direção ao passeio, e muito provavelmente, preparando-se para se deslocar na estrada de alcatrão. Tinha chovido bastante, a estrada estava ainda muito molhada, refletindo a luz dos candeeiros de iluminação. Havia ainda várias poças de água na estrada. O dia começava a clarear, mas ainda era muito cedo, de tal modo que não havia quaisquer carros a passarem na estrada. Talvez aqueles caracóis contassem com isso. Eram mais de quinhentos caracóis, isto numa contagem à vol d’oiseau. E parecia que, a todo o momento, esta autêntica coluna de bichos ía crescendo.
Um grupo de caracóis tão numeroso pressupunha alguma organização e, de certeza, liderança. Aquela movimentação extraordinária, como eu nunca vira, como um disciplinado exército de vários batalhões de infantaria, deslocando-se de forma tão ordenada e harmoniosa, desenhando sucessivas formas geométricas perfeitas, tinha de ter por detrás dele um planeamento rigoroso.
Perante aquele espetáculo, eu já não me podia ver como um salvador de caracóis. Aliás, estes caracóis não apareciam como seres perdidos, desorientados, imitando os humanos à procura de melhores condições de vida, representado nessa cena comovente o drama da condição humana. Não, estes caracóis todos assumiam uma proporção, digamos, industrial, massificadora. Já não tinha diante de mim, o drama individual dum pequeno caracol perdido, desorientado, pelo qual sentia uma íntima identificação e gerava em mim uma natural solidariedade. O que tinha agora aos meus pés, sem saber muito bem onde pôr os pés, era a própria sociedade de massas, na versão caracol. Todos aqueles bichos anónimos não despertavam em mim a mínima comoção. Apenas uma certa perplexidade a raiar de perto a indignação.
Posso dizer, afinal, que ainda bem. Eu não os podia contar. Já deviam ser mais de um milhar! Podia agora medi-los em quilos! E eram uns poucos quilos. Esta medida era já reflexo daquele mundo anónimo e frio que se movimentava aos meus pés. Estava tão longe das minhas motivações iniciais. Subitamente, senti a vontade de os agarrar com as mãos abertas, como se estas fossem umas pás. De facto, eu já não os iria salvar. Os caracóis, no seu atual movimento de massas, tinham perdido a sua individualidade, a sua história dramática. 
Lembrei-me, nesse momento, que aquela quantidade toda de caracóis, poderia proporcionar um excelente guisado. Foi então que vi aqueles caracóis a caminharem triunfalmente para o tacho, de encontro ao azeite, aos alhos, à cebola cortada aos quartos, mais a folhinha de louro e os orégãos; e, depois, os caracóis a adormecerem nessa cama quente de cheiros e sabores, numa fervura suave e longa. Sim, aqueles caracóis resultariam num excelente pitéu e eu tinha a certeza que me iria regalar com eles. E, afinal, que melhor e tão abençoado fim poderiam aqueles bicharocos ambicionar? Era a verdadeira consagração da sua (e da minha) existência!

José Carlos S. de Almeida