segunda-feira, 4 de maio de 2020

A doença que vem do estrangeiro

(Susan Sontag - Nova Iorque, 1933-2004)
Susan Sontag  em A Doença como MetáforaA Sida e as Suas Metáforas (Quetzal, 2009) aborda as várias metáforas que se tem vindo a associar às doenças, em particular àquelas que, por más razões, acabaram por ganhar uma dimensão civilizacional. A obra, composta por aqueles dois ensaios à volta das várias e diversas narrativas onde as doenças se foram dizendo e descrevendo, relaciona, a dada altura, o fantasma da doença e o estrangeiro. O que já acontecera no passado com outras situações e noutros textos.
Alessandro Manzoni em Os Noivos (1827) relata o surto de peste no ducado de Milão em 1630, que é atribuído às tropas alemãs. Defoe, em O Diário do Ano da Peste (1722) descreve uma peste no ano de 1665 que teria origem na Holanda. Já a peste bubónica teria reaparecido em Londres na década de 1720 vinda de Marselha. Por outro lado, em Crime e Castigo de Dostoiévski, o personagem Raskolnikov sonha com a peste em termos paradigmáticos: "Sonhou que todo o mundo estava condenado a uma nova e estranha peste que chegara à Europa dos confins da Ásia". A Europa, conclui Sontag, vê-se a si mesma como uma zona colonizada por doenças vindas de fora, de lugares exóticos e pobres. A doença é, afinal, uma espécie de invasão, curiosamente trazida muitas vezes pelos soldados de regresso a casa como aconteceu aquando da Pneumónica (1918), embora estes já voltando após o fim da guerra. Mas, neste caso, também havia quem, erradamente, atribuísse a Espanha a sua origem e daí o seu outro nome: "gripe espanhola". No caso da sífilis, existiu e foi muito difundida a teoria de que se tratava duma doença do Novo Mundo trazida para o Velho Mundo pelos marinheiros de Colombo. Segundo Sontag, os primeiros escritos médicos sobre a sífilis "não deram crédito a tão duvidosa teoria". Aquela teoria sobre a origem da doença seria a explicação que melhor servia os intentos moralistas e os respetivos julgamentos sobre o comportamento dissoluto dos homens.
A guerra à doença e o seu cortejo de metáforas está também presente na atual pandemia: os hospitais da linha da frente que são descritos como aqueles que levam por diante o primeiro embate; os constantes apelos a que não se dê tréguas ao vírus ou para que não se baixe a guarda apesar do aliviar das medidas de confinamento, uma espécie de entrincheiramento. Susan Sontag chama a nossa atenção para essa relação da doença que nos invade a partir do estrangeiro. Nada mais atual, quando, na atual pandemia, se tenta associar a difusão do atual vírus à China. E pior do que isso, a uma intenção deliberada dos Chineses, ao serviço duma pretensão hegemónica que começaria a despertar.
O Ocidente é, deste modo, invadido pelas doenças, por agentes invisíveis que atacam um continente fraco, debilitado, anémico, com as suas defesas em baixo. Como se preparassem o caminho a outras invasões, vindas de fora, por gente tão maltrapilha quanto virulenta, infecciosa... E, por essa razão, não haverá quem falte a vir apelar à guerra ao vírus que vem de fora. Ou a cair na armadilha ilusória de que nos defenderemos no futuro, se erguermos muros (ou velhas fronteiras) e impedirmos os estrangeiros (os estranhos) de entrarem cá dentro e cá dentro se instalarem e aqui se hospedarem.

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