quarta-feira, 13 de maio de 2020

Perder a cabeça para melhorar o comportamento sexual

A propósito de comportamentos egoístas e comportamentos altruístas e de como muitas
vezes, um comportamento objetivamente egoísta, pode ser subjetivamente altruísta e vice-versa, deparei com esta passagem no livro (clássico) de Richard Dawkins, O gene egoísta.

“Os louva-a-deus são grandes insetos carnívoros. Normalmente, alimentam-se de insetos menores, como as moscas, mas atacam praticamente tudo o que se move. Na época do acasalamento, o macho se arrasta com cautela na direção da fêmea, monta sobre ela e copula. Se tiver a oportunidade, a fêmea o come, começando por lhe arrancar a cabeça, quando o macho estiver se aproximando, logo que ele tiver montado nela, ou ainda depois que tiverem se separado. Para nós, pareceria mais sensato que ela esperasse a cópula se completar antes de começar a devorá-lo. Porém, a perda da cabeça não parece privar o restante do corpo do seu cadenciado movimento sexual. Na realidade, uma vez que a cabeça do inseto é a sede de alguns centros nervosos inibitórios, é possível que a fêmea melhore o desempenho sexual do macho ao lhe devorar a cabeça. Se assim for, isso seria um ganho secundário. O benefício primário é a boa refeição que ela obtém.” (Richard Dawkins, O gene egoísta, Companhia das Letras).

O autor, a seguir, relata o que classifica como sendo o "comportamento cobarde" dos pinguins-imperiais. Então, o que se passa é que se observou que eles permaneciam de pé, à beira da água, hesitando antes de mergulhar, temendo serem devorados pelas focas. Ora, bastaria que um deles mergulhasse para os outros poderem concluir se havia ali ou não focas. Como ninguém quer servir de cobaia, ninguém quer ser o herói altruísta, ficam todos à espera que algum, mais descuidado, dê o primeiro passo. Entretanto, se ninguém avançar, às vezes não hesitam em empurrar algum para verificarem se o perigo anda por perto. Isto já me lembra outra coisa, mas ficamos por aqui.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A doença que vem do estrangeiro

(Susan Sontag - Nova Iorque, 1933-2004)
Susan Sontag  em A Doença como MetáforaA Sida e as Suas Metáforas (Quetzal, 2009) aborda as várias metáforas que se tem vindo a associar às doenças, em particular àquelas que, por más razões, acabaram por ganhar uma dimensão civilizacional. A obra, composta por aqueles dois ensaios à volta das várias e diversas narrativas onde as doenças se foram dizendo e descrevendo, relaciona, a dada altura, o fantasma da doença e o estrangeiro. O que já acontecera no passado com outras situações e noutros textos.
Alessandro Manzoni em Os Noivos (1827) relata o surto de peste no ducado de Milão em 1630, que é atribuído às tropas alemãs. Defoe, em O Diário do Ano da Peste (1722) descreve uma peste no ano de 1665 que teria origem na Holanda. Já a peste bubónica teria reaparecido em Londres na década de 1720 vinda de Marselha. Por outro lado, em Crime e Castigo de Dostoiévski, o personagem Raskolnikov sonha com a peste em termos paradigmáticos: "Sonhou que todo o mundo estava condenado a uma nova e estranha peste que chegara à Europa dos confins da Ásia". A Europa, conclui Sontag, vê-se a si mesma como uma zona colonizada por doenças vindas de fora, de lugares exóticos e pobres. A doença é, afinal, uma espécie de invasão, curiosamente trazida muitas vezes pelos soldados de regresso a casa como aconteceu aquando da Pneumónica (1918), embora estes já voltando após o fim da guerra. Mas, neste caso, também havia quem, erradamente, atribuísse a Espanha a sua origem e daí o seu outro nome: "gripe espanhola". No caso da sífilis, existiu e foi muito difundida a teoria de que se tratava duma doença do Novo Mundo trazida para o Velho Mundo pelos marinheiros de Colombo. Segundo Sontag, os primeiros escritos médicos sobre a sífilis "não deram crédito a tão duvidosa teoria". Aquela teoria sobre a origem da doença seria a explicação que melhor servia os intentos moralistas e os respetivos julgamentos sobre o comportamento dissoluto dos homens.
A guerra à doença e o seu cortejo de metáforas está também presente na atual pandemia: os hospitais da linha da frente que são descritos como aqueles que levam por diante o primeiro embate; os constantes apelos a que não se dê tréguas ao vírus ou para que não se baixe a guarda apesar do aliviar das medidas de confinamento, uma espécie de entrincheiramento. Susan Sontag chama a nossa atenção para essa relação da doença que nos invade a partir do estrangeiro. Nada mais atual, quando, na atual pandemia, se tenta associar a difusão do atual vírus à China. E pior do que isso, a uma intenção deliberada dos Chineses, ao serviço duma pretensão hegemónica que começaria a despertar.
O Ocidente é, deste modo, invadido pelas doenças, por agentes invisíveis que atacam um continente fraco, debilitado, anémico, com as suas defesas em baixo. Como se preparassem o caminho a outras invasões, vindas de fora, por gente tão maltrapilha quanto virulenta, infecciosa... E, por essa razão, não haverá quem falte a vir apelar à guerra ao vírus que vem de fora. Ou a cair na armadilha ilusória de que nos defenderemos no futuro, se erguermos muros (ou velhas fronteiras) e impedirmos os estrangeiros (os estranhos) de entrarem cá dentro e cá dentro se instalarem e aqui se hospedarem.