A pouco e pouco esquecemo-nos dos pormenores dum rosto, das suas particularidades mais notáveis, dignas de nota, dos sinais, mesmo os dos mais invulgares. O rosto torna-se um mapa confuso até se transformar num apressado caldo de sensações. É por isso que o apaixonado, na incandescência do seu amor mis recente, tem dificuldade em se lembrar do rosto do outro, quando à noite se esforça por recordá-lo, para que ele entre no seu sonho a seguir. Que irritante se torna termos ali o rosto do outro quase à mão de semear, como um nome na ponta da língua mas de que não conseguimos lembrar. O rosto do outro ganha quase a dimensão do fantasma, de algo nebuloso, mas etéreo. Porém, não esquecemos a profundidade de um olhar, o modo como olhar nos olha, a maneira como nos sentimos olhados, profanados, e no acabamos por ver através do olhar do outro, nos reconhecemos.
Jorge recorda o olhar intenso de Luísa, um dia à noite na marginal, cada um dentro do seu carro, parados nos semáforos, os dois carros à distância mínima, como bólides à espera da bandeirada da partida, acelerando nervosos, motores inquietos. Nesse momento sentiram ao vivo como o molhar pode hipnotizar os amantes, os pode tornar incapazes de qualquer gesto, hipnotizados, imobilizados no auge do fascínio. À maneira da serpente. Não estavam bem imóveis: estavam docemente paralisados pelo olhar de cada um, suspensos no tempo que se suspendera também. Nenhum deles tinha vontade de quebrar esse encantamento. Estátuas para a eternidade. Também é verdade que, naquele momento, cumpriam uma parte do seu destino: o de, no momento em que se encontravam, apartarem-se por completo dos outros e das coisas e apenas celebrarem o seu espaço, o ambiente que laboriosamente, com muito cuidado, iam construindo. Como estátuas, apenas escutavam o bater feliz do coração. Apenas existiam um para o outro. Banalidades. E aquela mulher era o seu melhor cenário, de sempre. Naquele momento. Tomara ele tornar-se no justo jardim para a receber.
Para escutar enquanto se lê... Aqui.
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