Nesse ano faria 15 anos, era uma idade crítica, se é que não são todas. Frequentava o Liceu de Caldas da Rainha, colonialmente denominado como Secção liceal do Liceu Nacional de Leiria, algo que não nos dizia nada na altura.
Funcionava, então, nos Pavilhões do Parque, uma construção já com alguns séculos e que se situava no aprazível parque da cidade. Nesse ano, ou melhor, nesses anos, existia um numeroso grupo de professores que se revelaria marcante na minha formação, como foi o caso do António Avelãs, meu professor de Filosofia e que foi presidente do SPGL e de quem sou amigo. Ou a esposa, Ermelinda. Ou o Vasco, também professor de Filosofia. Ou o Morais, de Educação Física, um gigante generoso.
Com as mudanças operadas com o 25 de Abril de 1974, a vida na escola transformou-se radicalmente, alterando a relação entre professores e alunos. Não tenho dúvidas em afirmar que foram os anos mais importantes para a minha formação política e cultural e aquilo que hoje sou é ainda devedor das experiências democráticas que na altura ocorreram na vida das escolas e na sua gestão e que nunca mais viriam a repetir-se, iniciando-se alguns anos depois, um processo de retrocesso a esse nível que nunca mais terminou.
Mas voltemos a 1974, precisamente a 16 de Março. Era um sábado e preparava-me com um grupo de colegas para irmos disputar um jogo de futebol de salão na Marinha Grande. Na cidade já se notava uma agitação anormal e quando, no fim do dia, regressámos, já sabíamos o que tinha acontecido: que um grupo de militares do RI5 (Regimento de Infantaria 5) de Caldas da Rainha, avançara rumo a Lisboa no pressuposto de que outras unidades militares tinham procedido da mesma maneira, convergindo, na capital, no derrube do governo de Marcello Caetano.
Contudo, tinham sido os únicos a sair do quartel e acabaram por regressar às Caldas onde acabariam por se render depois de cercado o seu quartel por forças leais ao regime fascista. A cidade estava inundada por sinistros agentes da PIDE. Os principais dirigentes dos militares insurrectos acabaram detidos e levados para Lisboa. Na segunda-feira seguinte, quando entrei na sala de aulas, a minha professora de Francês, na altura considerada entre os alunos como a professora mais bonita da escola, estava virada para a janela que dava para o parque.
Quando se virou para nós, depois de todos terem entrado, reparámos que tinha estado a chorar. O marido era um dos oficiais do RI5 que tinha sido preso.
A justeza das ideias também pode ceder à dor dos momentos e das situações. Tinha casado há pouco tempo, tinha um bebé de um ano e via-se agora numa situação de incerteza com o marido detido. Durante aqueles dias houve um pacto entre os alunos: todos nos esforçámos por portar bem, por colaborar nas aulas, por aprender francês, pois já bastava a preocupação e a tristeza que sentia. Era uma forma de mostrarmos a nossa solidariedade.
Da parte dos professores seus colegas também observámos essa solidariedade. Até porque havia mais uma ou duas professoras que estavam casadas com militares detidos na sequência do dia 16 de Março. Na altura, lembro-me de Marcello Caetano vir sossegar a população portuguesa, porque estava tudo sob controlo.
Não estava e passado pouco mais de um mês aconteceu o 25 de Abril.
Foi numa quinta-feira e recordo-me de, nessa manhã, entrar na sala de aula de francês, de manhã, com o jornal que tinha comprado. Devia ser o Diário de Lisboa, que era o jornal que eu via o meu vizinho do 1º andar ler.
Conversava muitas vezes com ele e emprestava-me livros “revolucionários” que eu lia avidamente, às escondidas. Ora, como ele tinha estado preso por razões políticas no forte de Peniche e isso só podia significar ele ser um homem de bem e o Diário de Lisboa só podia ser o jornal indicado. Era esse e o Notícias do Funchal.
Ora, eu tinha comprado nessa manhã o Diário de Lisboa e entrei na sala de aula com ele bem visível. A professora de Francês que estava na sala de aula apresentava-se, nessa manhã bem sorridente, acentuando os seus bonitos traços de jovem mulher.
Quando eu entrei, dirigiu-se a mim e deu-me um grande e inesperado abraço. Nunca pensei que fosse possível receber um abraço duma professora. Devo ter corado, mas compreendia perfeitamente a sua felicidade. De qualquer modo, o significado afetivo da revolução de Abril ficou plasmado nesse abraço: era a revolução que permitia que professores e alunos pudessem dar um abraço; a revolução significou, pois, para mim, um adolescente de 14 anos, igualdade e liberdade.
Passados poucos dias, a minha professora de Francês tinha o marido à espera na sala de professores. Um oficial fardado no liceu era um motivo de alarido, pois na altura os militares eram os verdadeiros heróis. E, aquele, por razões dobradas.
Vinha com a sua filha de um ano ao colo. Aproveitei para saudar a minha professora de Francês e cumprimentar o marido. Ah, e também espreitei o bebé, uma menina de olhos azuis muito bonita. Saía à mãe, mas os olhos eram do pai.
Durante muitos anos ficou-me na memória aquele abraço. Ou como a tristeza nunca é definitiva. Ou como as revoluções também se fazem em nome da felicidade.
Passados muitos anos, estava na Faculdade de Direito à noite onde me tinha licenciado, contei esta história a uma colega. Por acaso ela tinha olhos azuis e acabou por me confessar que a mãe tinha dado aulas no liceu das Caldas. E o pai tinha estado preso por participar no 16 de Março. Contei-lhe que os conhecia, que a conhecia daquele tempo, era bebé. Falei-lhe daqueles dias, daqueles anos. E daquele abraço.
Não sei se esta história do abraço dum aluno e duma professora a emocionou. Esta história, como outras daqueles anos irrepetíveis duma revolução que mobilizou generosamente um povo.
Acabámos por nos apaixonar e casar. Afinal, aquele abraço de 1974 acabou por perdurar no tempo. O nosso amor talvez tivesse nascido naquele abril distante. É que o 25 de Abril também pode ser uma história de amor.
Castelo Branco, Quinta da Garalheira, 25 de abril de 2020 (originalmente publicado, com algumas modificações, no jornal on line Tornado em 25 de abril de 2016).