Gorky e Gaudí |
O
olhar dos meus cães, longe de sugerirem uma qualquer indistinção homem-animal[1],
devolvem-me e estimulam a minha humanidade. Quando o Gorky me olha espantado ou
o Gaudí se aninha no meu colo, eu torno-me mais humano. A vantagem única de
lidar com os animais é que temos a possibilidade de nos tornarmos mais humanos
e melhores pessoas. É tão verdade, como o seu contrário. Aquilo que sabemos da
tragédia de alguns animais revela também o que há de pior no coração dos
homens, a sua impiedade e, pior, a sua indiferença em relação ao outro.
A
nossa casa habitada pelos nossos cães, a nossa sala de estar, de livre acesso,
torna-se mais humana. A casa é, com eles, um espaço mais humanamente habitado.
A sua presença remete-nos a todo o momento para o nosso habitar, para o nosso
modo de habitar. Uma casa com cães é indubitavelmente habitada por pessoas.
Emmanuel Lévinas (1905-1955) |
Alain
Finkielkraut, no seu ensaio sobre o século XX, A Humanidade Perdida[2],
relata-nos um episódio passado com o filósofo francês Emmanuel Lévinas, oriundo
duma família judaica da Lituânia, e que este regista aquando da sua experiência
enquanto prisioneiro do regime nazi, detido num campo na Alemanha[3]. Ora, um
dia, teria aparecido no stammlager um
cão que estava abandonado. Os prisioneiros deram-lhe o nome de Bobby e o Bobby
adquiriu o hábito de os cumprimentar com alegres latidos, quer nas
concentrações matinais, quer quando regressavam do trabalho[4].
Esse
cumprimento era uma forma de reconhecimento dos prisioneiros que sentiam, desta
forma, que lhes era devolvida a sua condição de seres humanos. Reconhece Lévinas
que aquele comportamento do Bobby era para eles, prisioneiros sem esperança, um
reconhecimento essencial naquela situação. O cão Bobby devolvia-lhes a
humanidade suspensa. Por essa razão, passadas algumas semanas, as sentinelas
alemãs decidiram expulsar o animal.
[1] Voltarei a
este tema, mas reconheço que é neste ponto do suposto "perigo" da
indistinção homem-animal que se acoitam muitos dos irritados adversários dos
direitos dos animais, como se pode ver a propósito da recente legislação
aprovada sobre a possibilidade dos animais acompanharem os seus donos nos
restaurantes.
[2] Alain Finkielkraut,
A Humanidade Perdida - ensaio sobre o
século XX, Porto, Ed. ASA, 1997, 134 pp.
[3] Emmanuel Lévinas, «Nom d'un chien ou le droit
naturel», in Difficile Liberté,
Paris, Albin Michel, 1976, p. 201.
[4] Alain Finkielkraut, op. cit., p. 10.