Sempre entendi
que, dadas as caraterísticas do nosso tempo que determinam um viver a grande
velocidade[1], de
tal modo que não conseguimos acompanhar esse novo ritmo, tese defendida em 1970
pelo pensador norte-americano Alvin Tofler (1928-2016) em O Choque do Futuro, já não vivemos o tempo do grande romance
realista. Isto é, o tempo livre de que dispomos, bem como a nossa disposição
anímica para ler grandes romances, condicionam de tal modo a nossa maneira de
ler que dificilmente nos conseguimos enquadrar no horizonte de receção dos
romances realistas de finais do século XIX, Com efeito, será com alguma dificuldade
que os nossos jovens adolescentes "suportarão", por exemplo, a
demorada descrição ao longo de meia centena de páginas na edição de Os Maias da editora Livros do Brasil, do
Ramalhete, o severo casarão que a família dos Maias passou a habitar em Lisboa,
a partir do outono de 1875. Precisamos do tempo que teria uma ousada quanto
pálida jovem mulher oriunda da burguesia urbana, no remanso da sua casa
apalaçada, atentamente assistida por uma criada trigueira vinda da província.
Precisamos desse tempo que (já) não possuímos. Não temos esse tempo, não somos
desse tempo. Talvez nas férias os vá ler, pensava eu diante dos livros mais
volumosos e que, carinhosamente, apelidamos de tijolos!
Um desses tijolos
eram as Memórias da Segunda Guerra
Mundial de Winston S. Churchill que possuo numa edição brasileira da
Editora Nova Fronteira. Edição que condensa as originais Memoirs of the Second World War que foram publicadas em 1948 e que
valeram a Churchill, segundo o editor norte-americano, a atribuição do Prémio
Nobel da Literatura. Contudo, o tijolo adormecido na minha biblioteca possui
umas belas 1200 (mil e duzentas) páginas e condensam os seis volumes que
constituíam a edição original!
Mas sobre a
dimensão da obra ainda não foi tudo dito. Nesta versão condensada surge-nos o
excerto do prefácio onde confessava que aqueles seis volumes deviam ser
considerados como "a continuação da narrativa da Primeira Guerra
Mundial" e que assim abrangiam "uma exposição de outra Guerra dos
Trinta Anos". A extraordinária dimensão das Memórias de Sir Winston Churchill levar-nos-ia, num primeiro
relance, a julgar que Churchill apenas escrevia e assim ocupava todo o seu
tempo. Mas não, como poucos saberão. De facto, Churchill foi um grande
político, de extraordinária combatividade na oposição ou no governo, onde foi
ministro e primeiro-ministro, intervindo ativamente nas duas guerras mundiais
que ocorreram na primeira metade do século passado. Só que, além disso, também
pintava, a óleo e aguarelas, completando mais de quinhentas telas, o que lhe
valeu o direito a uma exposição individual na Diploma Gallery da Royal Academy,
em 1959.
Como explicar
tamanha produção? O seu estranhíssimo horário[2]
não explica tudo. E se o segredo está nas mil e duzentas páginas do tal tijolo
adormecido, não será descoberto nas próximas férias dos próximos anos, pois já
tenho previstos e agendados outros tijolos.
Anotem-se alguns.
A biografia de Mao, escrita por Jung Chang e Jon Halliday (Mao, Bertrand Editora, 855 pp.)[3] e
a biografia de Hitler, de Ian Kershaw (Hitler,
Publicações Dom Quixote, 849 pp.). Do fundamental Tony Judt, o seu Pós-Guerra - história da Europa desde 1945
(Ed. 70, 963 pp.), essencial para se compreender a outra Europa, a leste. Ainda
no campo do ensaio, está na lista o importante estudo de Christopher Andrew e
Vasili MItrokhine sobre as atividades do KGB na Europa e no Ocidente, O Arquivo Mitrokhine, com prefácio de
José Pacheco Pereira (Publicações Dom Quixote, 972 pp.). A lista continua, pois
no campo da ficção é ainda mais numerosa. Menciono apenas alguns. De Thomas
Mann, A Montanha Mágica (Publicações
Dom Quixote, 832 pp.); do escritor norte-americano John Frenzen, que esteve
recentemente entre nós, o seu romance Liberdade
(Publicações Dom Quixote, 684 pp.) e o romance 2666 do chileno precocemente desaparecido Roberto Bolaño (Quetzal
Editora, 1030 pp.).
E ficamos por
aqui. A lista dos tijolos em fila de espera continua e só o seu registo parcial
é angustiante. Se, inesperadamente, falecer entretanto, reclamo a reencarnação
só para os poder ler. A reforma antecipada não me parece suficiente. De
qualquer modo, espero derrubar alguns em 2018.
[1] Cf. Jean-Marc Salmon, Um Mundo a Grande Velocidade - a globalização, manual de instruções,
Porto, Ambar, 2002, 220 pp.
[2] Sestas de várias horas, enfiando-se na cama a seguir
ao almoço, de pijama vestido, e que lhe permitiam, depois, trabalhar toda a
noite!
[3] Não esquecendo da mesma Jung Chang, o seu Cisnes Selvagens, eternamente recomeçado.