Fernando Savater, no seu interessante e útil livrinho A Arte do Ensaio - ensaios sobre a cultura universal (Lisboa, Temas e Debates, 2009, 152 pp.) e a propósito de dois compêndios que traçam o perfil da filosofia no século XX escritos por Christian Delacampagne e Remo Bodei (pp. 41-44), lamenta, sem qualquer "vaidade patriótica", que não haja ali referências a Ortega Y Gasset ou Unamuno e que foram pelo menos tão marcantes quanto outros que surgem nos compêndios, citando os casos de Richard Rorty e Derrida (p. 42). Savater refere que em relação a alguns autores, a sua compreensão fica impossibilitada "por três ou quatro fáceis temas de cariz jornalístico que dispensam uma leitura mais atenta dos seus livros" (p. 91). Esta oportuna consideração de Savater vem a propósito do canadiano Marshall McLuhan de quem hoje resta a frase «o meio é a mensagem» e o utilizadíssimo conceito (ou antes, as palavras que o designam) de «aldeia global». E conclui o professor de filosofia basco que "sob esses dois concisos epitáfios, enterrou-se a obra completa de um dos críticos culturais mais inovadores do século XX" (p. 92).
Ora,
seria possível uma outra história das ideias, com outros nomes que não aqueles
que já fazem parte do cânone? Porquê certos nomes que possam ter reconhecida
importância e não outros que foram bem recebidos no seu tempo e acabaram,
depois, por cair no esquecimento? Porquê aqueles e não estes? É a história das
ideias e dos autores também vítima de certas anedotas, imprevistos, desencontros?
Há um caso concreto que me sugere esta tentativa
de reflexão. Toda a gente conhece o Manifesto Anti-Dantas do Almada Negreiros.
Todos conhecem a sua exclamação "morra o Dantas, morra, pim!" ou
"o Dantas cheira mal da boca" ou ainda "se o Dantas é português,
então eu quero ser espanhol!". Enfim, quase toda a gente conhece o
Manifesto Anti-Dantas. Poucos conhecem o alvo do chiste. De facto, apenas uma minoria conhece o Dantas, o Júlio Dantas (1876-1962). E pior, o que se sabe do Dantas é
o que o Almada Negreiros nos disse e nos deixou. E através do ridículo enojado
do Almada, construiu-se a imagem do Dantas, manipulando o seu horizonte de
receção. E o Dantas ficou-nos através do Almada. O que sabemos do Dantas? O que
o Almada disse e insinuou através do Manifesto. Só que o Júlio Dantas é muito
mais do que isso. O Júlio Dantas foi um grande intelectual, médico, político e
diplomata, e que até escrevia muito bem, ensaios, romances, peças de teatro.
Mas à conta do engraçado texto do Almada, o Dantas ficou, para a maioria de
nós, reduzido a um episódio risível, a um motivo de graçola. O que é uma grande
injustiça para o Dantas. E haveremos de o resgatar, um destes dias, dos
grilhões dessa pilhéria injusta.
Nota
final: há aqui suposto um problema que se relaciona com
a história das ideias e a construção dos cânones. Além, evidentemente, do amor
aos livros e à leitura. Ficam, pois, duas sugestões de leitura, uma para a
ansiedade canónica e outra para os amantes dos livros. Os primeiros, com muito
tempo livre e os segundos, com a sua falta. Assim, para quem tem muito tempo:
Harold Bloom, O Cânone Ocidental,
Lisboa, Temas e Debates, 2011, 588 pp. Para quem tem menos tempo: Jacques
Bonnet, Bibliotecas Cheias de Fantasmas,
Lisboa, Quetzal, 2010, 164 pp.
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