Deixo aqui, com pequenas alterações, um curto texto elaborado em 2008 sobre as questões da eutanásia e do suicídio assistido e que nessa altura mobilizavam a minha reflexão.
Já não sou um
homem novo. Passei dos cinquenta e tenho consciência plena de que ultrapassei
metade de um percurso, que se a nossa vida pode ser comparada com uma caminhada
em direcção a um monte, sei que já fiz a parte do trajeto, a subida, e que
agora é sempre a descer. E a descer é mais rápido, com todos os santos a ajudar.
Ora quando penso no que o futuro me reserva ainda, sou por vezes assaltado com
representações sobre a minha morte. Não é um pensamento frequente, mas não
posso deixar de pensar nisso. Reconheço até que, mal assoma, trato
imediatamente de o afastar. Nem todos adotam a atitude despreocupada de Epicuro
que não temia a morte, porque enquanto vivíamos, a morte não existia e quando
esta surgisse já tínhamos deixado de viver para nos preocuparmos com isso.
Mas nem sempre
fomos mortais. Houve uma altura em que éramos imortais, pois a morte não
existia, perante a intensidade da vida que se manifestava exuberantemente na
nossa vida a correr. Felizmente ou infelizmente, esse tempo já passou. A partir
de certa altura a morte surge-nos com mais insistência. Encontramos muitos dos
nossos amigos em velórios, depois de termos passado uns anos a encontrá-los em
casamentos e baptizados. É uma lei da vida que a vida termine um dia.
Aos poucos, a
morte começou a impor-se. Porém, a vida sem a morte, sem essa compressão, era
inviável. A pressão da morte intensifica os pequenos acontecimentos da nossa
vida. Uma vida dilatada ao infinito era um convite a um apagamento do sentido,
a uma diluição sem fim dos sentimentos, das emoções e dos afetos. Essa diluição
tornaria a nossa vida demasiado flat, sem marcas e sem acontecimentos
marcantes, uma calmaria descolorida, sem sabor, um ir sendo que seria mais um
deixar andar. Pelo contrário, a consciência de que existe um fim, coloca os
acontecimentos sob a possibilidade de não se virem a repetir e intensifica os
momentos. A morte não vem apenas dar um sentido à vida; vem tornar a vida no
próprio sentido. [vm]
Pensar a morte
não é agradável. Quando ela irrompe no nosso quotidiano, somos assaltados por
imagens pouco exaltantes. E no meio desses pensamentos lúgubres, aquilo que me
assusta e assusta toda a gente é a ideia de uma morte dolorosa, antecedida por
um longo período de sofrimento. Sofrimento para mim e para os que na altura me
rodearem, que serão por certo aqueles que eu amo e aqueles que mais me amam.
Quando penso
nisso, também penso no que poderia ser uma morte fácil, rápida e sem dor. Uma
boa morte. Se possível, ocorrendo durante o sono, sem consciência da passagem
para o outro lado ou depois duma despedida assumida e festejada. Essa morte
doce pode acontecer por acaso. Mas hoje sei que também a posso desejar e planear
e que em certos países do mundo e nomeadamente da Europa, perante situações de
doença terminal ou de uma previsível situação que, por variadíssimas causas
possa limitar assustadoramente uma vida digna, seja sob a forma de eutanásia ou
de suicídio, assistidos por pessoal médico, é possível, desde que corresponda a
um desejo expresso e persistente do doente ou dos seus representantes. Não é o
caso do nosso país.
Em Portugal,
aqueles que me ajudassem e colaborassem nesse processo, mesmo sob a forma de ajuda
ao suicídio (suicídio assistido), respondendo ao meu pedido e agindo por
sentimentos de compaixão e piedade, iriam incorrer na prática dum crime, pelo
qual seriam julgados e, certamente, condenados. Mesmo que a opinião pública ou
o pessoal de saúde o não julgassem desse modo. Um modo que, aplicando cegamente
a lei, é a forma mais injusta de pretensamente exercer a justiça. No entanto,
há sinais entre nós de que as coisas começam a mudar, do mesmo modo que também
assistimos às primeiras manifestações daqueles que pretendem que tudo continue
inalterado.
Porém, os
problemas não ficam por aqui. É que quando chegar a altura não sei agora se
serei capaz de tomar, então, a decisão de solicitar essa morte piedosa, uma
morte que me leve durante um sono, uma morte indolor e doce, a eutanásia. O
problema é que não posso saber hoje se amanhã serei capaz ou desejarei
essa morte. Eu não sei agora o que se irá passar com a minha vontade em relação
a um momento que ainda está para vir. Honestamente, não posso adiantar nada
sobre a minha coragem, a minha fraqueza, o meu desespero num tempo que ainda
desconheço, num tempo que ainda está para vir. Como também não sei agora o que,
racionalmente, penso sobre o tema. Outra questão prende-se com a eventualidade
de nessa altura me encontrar em coma e não conseguir manifestar a minha vontade
e não a tendo expresso antes. E mesmo tendo manifestado a minha posição, estarão
suficientemente seguros aqueles que me amam acerca da minha decisão, que a
minha decisão ainda se mantém tal como a manifestei anteriormente? Estes são
alguns dos problemas que uma decisão antecipada sobre a morte levanta. Porém,
outras questões anteriores também se colocam, a saber, se me é permitido dispor
da minha vida e, portanto, da minha morte. Trata-se duma decisão que está
dentro da esfera das minhas faculdades? É uma decisão pessoal, defendem alguns.
Mas é ainda uma decisão pessoal ou que se mantém na esfera íntima do indivíduo,
quando para se concretizar terá que recorrer aos outros ou mesmo a instituições
públicas?
O tempo da morte
é sempre um tempo ainda a chegar. Era muito fácil começar a enumerar em
abstracto tudo aquilo que um dia faria, tudo aquilo de que um dia seria capaz
de fazer. Era muito fácil, mas não era honesto. O que sei, contudo, para já, é
que me é insuportável pensar que alguém que eu não conheço e que nem me
conhece, que possivelmente nunca me viu noutra ocasião, que desconhece
completamente o que eu penso, o que eu sinto, o que eu fui e sou, possa decidir
por mim numa matéria que só a mim, ou a mim juntamente com aqueles que eu amo e
que me amam, diz respeito. O que eu sei desde já é que é incomportável e
revoltante imaginar que alguém, precisamente quando me aproximo do fim, me possa
condenar a uma pena de sofrimento prolongado e acrescentar à iminência da minha
morte mais dores e sofrimento desnecessários. No momento em que me devia
preparar para me despedir daqueles que amo, em que quereria preservar uma
imagem apaziguante e um rosto de serenidade, porque é assim que eu quero ser
recordado, alguém que não me conhece decidirá que eu devo estar submetido a
dores incalculáveis que me absorverão por completo e me impedirão de viver os
últimos dias da minha vida de acordo com os meus desejos. A legitimidade que
possui para me tratar não lhe confere um poder absoluto para decidir sobre o
que acha que é melhor para mim. Tal como os meus familiares não possuem esse
poder se eu estiver em condições de pensar e decidir. Essa pessoa está a
retirar-me a possibilidade de viver até ao fim como eu desejo, quando
curiosamente me impede de me retirar de cena mais cedo. Essa pessoa aceita que
seja ela a decidir e não aceita que eu decida? O que é insuportável é que um
desconhecido possa decidir aplicar-me uma pena que eu nada fiz para merecer.
Em nome de quê
pode alguém fazer-me sofrer e recusar a minha vontade? Neste momento, em
Portugal, os médicos, os políticos e os legisladores, uns por acção e outros
por omissão, decidem como é que eu e qualquer um que opte por morrer em
Portugal, deverão terminar os seus dias; retiram ou aceitam que não esteja no
âmbito da minha vontade decidir como e quando pretendo morrer — não faz parte
do catálogo dos meus direitos fundamentais o direito a morrer. Confundem o
direito à vida com a obrigação de viver. Obrigar-me a viver pode não ser o modo
mais dignificante de defender o direito à vida.
Este curto artigo
pretende ser um contributo para a discussão sobre a eutanásia e o suicídio
assistido como formas de concretizar um direito que também pretendemos ver
reconhecido — o direito a morrer. Porque pior do que discutir aquilo que poderá
chocar os nossos valores é fingir que o problema não existe. Como se não se
morresse em Portugal, como se as máquinas não tivessem que ser desligadas
quando faltam as camas no hospital. Como se aqueles que têm dinheiro não
pudessem ir ao estrangeiro morrer, como algumas senhoras mais endinheiradas íam
abortar a Inglaterra sob o pretexto de irem às compras a Londres.
Aborto e
eutanásia: questões ligadas, questões silenciadas
Com efeito, para o
melhor e para o pior, para esclarecer ou para confundir, o que é certo é que as
questões do aborto e as questões da eutanásia têm surgido ligadas. Embora se
possa e se deva discutir a concepção ideológica e filosófica da vida que está
subjacente às posições em debate, trata-se de decisões sobre a vida nos seus momentos
extremos, cronológicos e ontológicos. Enquanto decisões e procedimentos que afetam
a vida, compreende-se que possam surgir ligadas. Contudo, na ausência de um
debate em Portugal sobre a eutanásia e o suicídio assistido, tem sentido que,
após a discussão sobre o aborto, nos proponhamos fornecer elementos para reflectir
sobre o fim da vida e as situações e decisões que lhe estão associadas. Aqueles
que defenderam posições pró-aborto aparecem, na maioria das vezes, a defender a
eutanásia e o suicídio assistido. De tal maneira as posições surgem associadas
que apareceu como contraditório defender-se a interrupção voluntária da
gravidez e atacar a eutanásia e o suicídio assistido, defender o fim de uma
hipotética vida e colocar-se contra o fim de uma vida degradada[1].
Noutros
países, o debate sobre o aborto arrastou associado o debate sobre a eutanásia.
Os adversários da interrupção voluntária da gravidez, esgrimindo a bandeira da
defesa da vida, tentaram sempre avisar que, uma vez legalizado o aborto, seria
a vez da eutanásia ser também legalizada. Na continuação dessa argumentação, os
adversários da IVG vinham também agitar o perigo da ladeira escorregadia, isto é, que uma vez legalizadas ou
despenalizadas aquelas práticas, entraríamos numa espiral inevitável de recurso
maciço à IVG e à eutanásia. Ora, os números desmentem facilmente esse
argumento, visto que não aconteceu nenhum aumento assustador de recurso à IVG e
à eutanásia nos países em que houve alterações legislativas favoráveis à
despenalização desses procedimentos. Contudo, associar aborto e eutanásia
enquanto processos atentatórios da vida continua a ser uma prática recorrente,
mesmo utilizando argumentos perfeitamente mistificadores.
No início de 2007, no seu discurso de
ano novo, o papa Bento XVI afirmou que a eutanásia e o aborto eram formas
contemporâneas de terrorismo contra a vida, afirmação que foi secundada pelo
chefe máximo da igreja católica portuguesa. Seriam formas de terrorismo na
medida em que constituiriam atentados contra a vida. Ora, em primeiro lugar devem
ser entendidas estas afirmações num contexto de luta ideológica e
propagandística da Igreja contra os muitos movimentos de cidadãos e activistas
dos direitos humanos que pretendem integrar os direitos à interrupção voluntária
da gravidez e o direito à eutanásia e ao suicídio assistido no catálogo dos
direitos humanos. Poderíamos também entender aquelas afirmações radicais do
papa como efeito de um estilo pessoal, estilo que a propósito de outros
assuntos, enfurece de vez em quando os adeptos do Islão. Seja um adorno pessoal
ou uma mera figura de estilo no contexto de luta ideológica, o que é verdade é
que aquela afirmação em nada contribui para um esclarecimento sereno e lúcido
dos valores em causa, mas apenas os mistifica nos seus intuitos propagandísticos.
Trata-se, de facto, de uma afirmação terrorista e não fica nada bem ao herdeiro
de Pedro fazer afirmações que muito devem à Verdade. É que a misericórdia que
motiva aqueles que recorrem à eutanásia ou o sofrimento que acompanha aqueles
que praticam o aborto ou o suicídio nada tem a ver com o instinto assassino de
um terrorista. Como é possível, então, equiparar a eutanásia e o aborto ao
terrorismo? Porque desprezam a vida? Nada mais falso! Deveríamos antes perceber
de que vida estamos a falar…
Uma questão fundamental: decidir ou
deixar que os outros decidam por nós?
O
que pode ser considerado uma forma de terrorismo, em matéria de princípios de
fé espiritual e de convicções pessoais, é retirar às pessoas alternativas que
podem ser escolhidas no seu processo de vida. O que é censurável é retirar às
pessoas a possibilidade de escolher e, assim, assumir a responsabilidade moral
pelas suas palavras e actos. Recorrer à interrupção da gravidez ou decidir-se
por um procedimento eutanásico devem constituir práticas a que cada um, no
exercício consciente da sua liberdade, deve poder assumir. Pelo contrário, estigmatizar
aquelas práticas condenando-as do ponto de vista moral e religioso e ainda
penal é uma forma de exercício terrorista de redução da liberdade humana, quando
é enquanto ser livre, decidindo o seu trajecto de vida, que consagramos a única
forma de o homem assumir responsavelmente a sua condição e as suas opções. Ronald
Dworkin, professor americano da Universidade de Nova Iorque na área da
filosofia do direito e da filosofia política, designa como uma questão crítica
de natureza político-constitucional a de saber se a sociedade (ou o legislador
fundamental, diríamos nós) opta pela coerção ou pela responsabilidade em
relação aos cidadãos. Ora, para nós, estamos diante de uma questão crítica
fundamental: a de saber se devemos impor um caminho impedindo legalmente uma ou
várias soluções ou permitimos que, pela despenalização dos procedimentos
eutanásicos, cada um possa decidir o caminho que quer seguir,
responsabilizando-se pelas opções que tomar. Uma sociedade democrática adulta e
evoluída é aquela que, em matérias do foro da consciência individual e que
pertencem ao nicho de intimidade de cada um, não impõe uma resposta e uma
conduta, manipulando as consciências, mas antes deixa que cada um possa decidir
de acordo com as suas convicções e valores próprios. Uma democracia evoluída
não ousa estabelecer à partida quais são os caminhos que cada um deve seguir em
matérias do foro pessoal; uma democracia evoluída não é aquela que se apresenta
com as soluções, mas antes estabelece os vários caminhos que conduzem às
soluções, aos consensos e mesmo aos erros, permitindo que os cidadãos ensaiem
as soluções que escolhem a partir do espaço público da discussão. O fundamental
é que existam vários caminhos. Afinal, críticos de governos de partido único
querem impor caminhos de único sentido? Dworkin fala-nos duma questão crítica
político-constitucional que será a de ter que decidir perante as opções que uma
’sociedade decente’ tem diante de si, isto é, ter que decidir sobre se “irá
optar pela coerção ou pela responsabilidade, se tentará impor a todos os seus
membros um juízo colectivo sobre assuntos do mais profundo carácter espiritual,
ou se irá permitir e pedir a seus cidadãos que formulem, por si mesmos, os
juízos mais crucialmente definidores da sua personalidade naquilo que diz
respeito a suas próprias vidas.”[2]
Para lá do confronto de valores que lhe subjaz, trata-se duma questão política
de fundo que deverá ser acautelada constitucionalmente. O problema da eutanásia
e do suicídio assistido também passará por aí, como teremos oportunidade de ver,
partindo duma reflexão sobre os direitos do homem.
Não
podemos, portanto, deixar de pensar no enquadramento político do problema.
Aqui, o silêncio dos políticos não é de ouro. Enquanto nalguns países a questão
é debatida em termos que se estendem à sociedade civil, existem outros países
onde tal debate não acontece e mesmo os tímidos afloramentos do tema são feitos
em condições em que os seus autores não pretendem grande ressonância mediática.
Porquê esta cortina de silêncio, quando os jornalistas ou a classe política,
por exemplo, são capazes, em princípio, de agarrar todos os temas e dar-lhes
uma repercussão mediática? É evidente que se trata de uma questão fraturante,
provocando divisões no tecido social ou fazendo com que essas divisões
adormecidas possam tornar-se mais evidentes. Porém, uma sociedade que se
pretende moderna e evoluída não deve evitar as questões mais radicais. Não há aqui
soluções consensuais, nem sequer existe consenso no modo de colocar o problema.
Trata-se, pois, de um problema e de uma solução que acabarão por dividir a
sociedade. Pode-se pensar que este tipo escaldante de questões não seja do
agrado dos políticos: o problema e as respostas podem rebentar-lhe nas mãos ou,
pior do que isso, podem rebentar-lhe as mãos. Os políticos temem, naturalmente,
perder votos e a propósito deste assunto poderão sempre afirmar,
demagogicamente, que existem problemas mais urgentes. Contudo, todos os
inquéritos realizados, quer junto da população, quer junto da classe médica e
de enfermagem, revela que existe uma clara maioria de inquiridos a favor da
despenalização da eutanásia, maioria que é menos expressiva quando se trata de
pronunciar a favor da legalização da eutanásia activa. E percebe-se que assim
seja, pois a solução despenalizadora é mais suave que a solução legalizadora.
Por
outro lado, a descrição de situações concretas feita pelos media resulta sempre
mais favoravelmente para os partidários da eutanásia que para os seus
opositores. O drama dum doente tetraplégico ou o sofrimento dum doente em fase
terminal é rapidamente amplificado pelos media
e conduz facilmente a uma tomada de posição emocional ou emocionada favorável a
uma solução misericordiosa que ponha um fim à desumanidade intolerável.
Portanto,
apesar de ser uma questão dita fraturante, não dividirá o eleitorado
exactamente ao meio. O político que se preocupe mais com as tendências do
eleitorado do que com as suas próprias convicções, facilmente poderá
desenvolver um discurso cativante, a limite demagógico, colocando os eleitores
do seu lado. No entanto, nem assim o debate acontece e não acreditamos que isso
se deva ao simples facto de termos políticos tão escrupulosos que não sejam
capazes de discutir um tema correndo o risco de serem acusados de correrem
atrás do ouro. Porém, entre nós, começam a surgir vozes do lado da classe
política que afloram o tema e a necessidade de o parlamento ter que vir a tomar
uma qualquer posição, aceitando que é necessário modificar a situação que se
vive.
A
hipocrisia: rabo escondido com o gato de fora
A hipocrisia classifica um comportamento que tenta
negar, jurando a pés juntos, uma realidade que toda a gente sabe que existe,
apesar de, oficialmente, se negar a sua existência. É qualquer coisa como tapar
o sol com a peneira, sendo que quem usa a peneira serve-se duma falsa linguagem
moralista e bem-intencionada para fazer crer que o Sol não existe. Ora, tal como
a propósito do aborto e do debate sobre o aborto entre nós [e no estrangeiro],
também a questão da eutanásia e do suicídio assistido está coberta com o manto
vergonhoso da hipocrisia que consiste em fingir que o problema não existe,
quando, de facto, “na prática hospitalar a eutanásia indirecta é um facto
consumado”[3].
Não podemos ocultar ou virar as costas ao problema que resulta duma situação
silenciada de se praticar a eutanásia diariamente nos nossos hospitais, mesmo
duma forma indirecta.
Até aos anos 80, em França, prevalecia uma
verdade oficial que tentava tapar o sol: que nunca foi praticada nenhuma forma
de eutanásia, nem activa, nem passiva, nem consentida, nem imposta, nem
directa, nem indirecta. Era esta a situação decretada oficialmente. Era a
verdade oficial. Era o gato de fora com o rabo escondido. Até que…
Em
Portugal, a situação deverá ser semelhante. O debate sobre a eutanásia não se
fez até agora porque o ambiente também está contaminado por este comportamento
hipócrita. Apesar da lei penal, a eutanásia e o suicídio assistido existem e
praticam-se de forma discreta, mesmo em Portugal. Aliás, entre nós, com a
escassez de recursos no sector hospitalar e da saúde, haverá sempre alguém
incumbido de desligar a máquina, por esta ser precisa para um doente urgente
acabado de chegar. Imagine-se a situação seguinte: um doente em fase terminal e
com uma doença irreversível está ligado a uma máquina de suporte vital. Só esta
máquina é que o mantém ligado à vida, de outra forma morreria. Entretanto, chega
um doente urgente, com hipóteses de sobreviver e recuperar alguma qualidade de
vida, embora, no imediato, necessite de ser ligado à máquina. Só existe aquela
máquina. Que fazer? O que imaginam que se tem feito? Desculpamo-nos com a
empregada de limpeza que teve de desligar a máquina para ligar o aspirador? Deixamos
morrer o doente que tinha hipóteses, mas que chegou atrasado ao hospital? Estamos,
portanto, a lidar com uma realidade que não podemos ignorar ou que só poderemos
ignorar de uma forma hipócrita.
Por
exemplo, nos serviços de reanimação, onde a maioria dos doentes num hospital
acabam por falecer, o pessoal médico tem que muitas vezes decidir pela
limitação ou suspensão dos tratamentos, parar a ventilação artificial ou
suspender o tratamento que permite ao músculo cardíaco funcionar. Os médicos
tomam uma decisão quando concluem que já não há nada a fazer e o doente,
inconsciente, já não poderá despertar do seu coma profundo e irreversível.
Trata-se de uma prática corrente de eutanásia passiva.
Para
as autoridades ministeriais e/ou hospitalares não se pratica a eutanásia. Mais,
existe um horror oficial e uma condenação veemente em relação a tal prática.
Mas, tal como em relação às bruxas, o que é verdade é que a máquina se desliga,
até porque os recursos são escassos, o que em Portugal é ainda mais evidente.
Portanto, se a máquina se tem de desligar para admitir mais doentes, como se
pode dizer que não existe eutanásia em Portugal? Não se pode considerar que não
existe só porque ainda não saltou para as páginas dos jornais ou para os
noticiários das televisões. Ou porque alguém diz que não existe. Existir ou não
existir não depende da vontade ou duma declaração oficial.
A hipocrisia
é tanto mais visível quando o argumentário contra a eutanásia é servido já
requentado. Com efeito, este debate é a repetição de outros que já ocorreram no
passado: por exemplo, a propósito do uso da pílula e da contracepção e da
interrupção voluntária da gravidez. A luta pela eutanásia é uma luta repetida.
Em França, a propósito da eutanásia, reacenderam-se os mesmos argumentos,
esgrimiram-se as mesmas forças e intervieram os mesmos actores que nos debates
a propósito da contracepção e da interrupção voluntária da gravidez. Apesar de
largamente praticadas, também estas práticas eram condenadas, em nome dos
mesmos princípios morais e valores fundados no carácter sagrado da vida. A
Igreja e a Ordem dos Médicos, tal como na discussão sobre a eutanásia,
classificaram como bárbaros os que estavam a favor e anunciaram consequências
catastróficas no caso de aprovação das outras teses. Mas se o debate da
eutanásia se assemelhou aí a um “remake de filmes já vistos”[4],
talvez se possa então antecipar o seu desfecho: é que, apesar da oposição
daquela sagrada aliança, a legislação a favor da contracepção e a
despenalização da interrupção voluntária da gravidez acabaram por vencer sem
terem ocorrido as consequências catastróficas e imorais que eram agitadas.
Na
falta de legislação e regulamentação tudo fica nas mãos dos médicos e do pessoal
de enfermagem. A falta de regulamentação, que decorre também da falta de
coragem para regulamentar, permite a arbitrariedade, faz com que o destino dos
pacientes fique dependente das convicções pessoais do pessoal médico. Quando
chegar a minha vez, se não for conhecida a minha vontade ou, sendo conhecida,
não for ou não puder ser respeitada e continuarmos sem legislação nesta área,
tudo vai depender da formação moral do médico que me calhar. Os meus últimos
dias estão dependentes do acaso!... Estamos, de facto, diante de um vazio
jurídico, que será preenchido por decisões casuísticas. Mas a hipocrisia também
se manifesta por aí: legislar seria abrir um processo de debate e discussão
públicas. Ora, isso é o que precisamente se pretende evitar, preferindo-se, em
alternativa, convocar à volta da questão, um conjunto de slogans moralistas,
que apelam à emoção muito mais o que à reflexão. É preciso sair do vazio
jurídico não para proibir e punir, mas para enquadrar as práticas discretas e
ilegais que já existem, proteger as decisões solitárias daqueles que cedem (ou
cederam) aos pedidos veementes e pungentes dos familiares e dos doentes
desesperançados e submetidos ao sofrimento sem sentido. Práticas que precisam
se de ser reguladas para serem criados critérios e requisitos a serem observados
para que os procedimentos saiam da clandestinidade e do acaso e ocorram nas
melhores condições sanitárias, respeitando os direitos do paciente e dos seus
familiares.
Debater
o problema e pôr fim à hipocrisia
Temos assistido na
Europa e nos Estados Unidos a um debate constante sobre a maneira de morrer
(eutanásia e suicídio assistido), um debate que envolve questões médicas,
filosóficas, jurídicas e políticas, e também psicológicas e culturais. Esse
debate assume picos de intensidade quando alguns doentes, muitas vezes em fase
terminal, em estado de coma irreversível ou paraplégicos, ou os seus familiares,
reclamam a eutanásia e essa situação salta para os meios de comunicação. Em
Portugal, estranhamente, não há notícia entre nós de alguém ter reclamado a
eutanásia para si. Embora ninguém duvide que existam doentes em fase terminal
atravessando profundo sofrimento ou em coma vegetativo persistente ou em
situação de desesperante paraplegia. Entre nós o silêncio é pesado, interrompido
por pontuais declarações e publicações. Contudo, é preciso não esquecer que nos
inserimos num espaço europeu onde esse debate existe, as organizações
proliferam e as legislações nacionais vão sendo alteradas. No nosso país, algumas
organizações da área da bioética vão introduzindo alguns assuntos relacionados
com a eutanásia e o suicídio assistido. Como também anunciam a sua intenção de
vir a propor algumas iniciativas no campo legislativo. No entanto, outras
organizações e personalidades preferem optar pelo silêncio. Todos reconhecem
que se trata de uma questão complexa com óbvios custos políticos para quem
atirar a primeira pedra.
Há, no
entanto, que evitar e ultrapassar a hipocrisia que rodeia e encobre o problema.
Várias vozes começam a manifestar-se e a tomar posição sobre o tema. Para já,
propondo a legalização do testamento vital, como foi o caso da Associação
Portuguesa de Bioética. Ou anunciando o propósito de apresentar uma proposta no
âmbito da despenalização da eutanásia e do suicídio assistido. Do lado dos que
se opõem também se notam os primeiros sinais de incómodo por se falar nisso,
empunhando, como sempre, a bandeira da defesa da vida, da qual se lembram de
desfraldar nestes momentos mais radicais, enrolada que estava no fundo da dispensa
desde a última manifestação. Os políticos, sabiamente, adiam a tomada de
posição. Mas sabem que não se pode adiar sine
die e que, também a propósito deste problema, estamos na Europa.
Quanto a nós,
pretendemos avançar com um modesto contributo para um debate que acabará,
inevitavelmente, por acontecer. Avançar com este contributo para uma discussão
na esperança de que os conceitos e os argumentos se clarifiquem e se consolidem
e mobilizem os cidadãos para tomar partido. Uma exigência que começamos por colocar
a nós próprios já que também sentimos essa necessidade por razões de ciência e
de respeito no âmbito duma ética da discussão e de animação do espaço público,
como factores de enriquecimento da nossa democracia e para as melhorias das
condições de vida de cada um.
Este debate, em
Portugal, finalmente, já existe, não lhe escaparemos. Afinal, há, neste
momento, quem sofra e se debata consigo mesmo sobre o que fazer.
José Carlos S. de Almeida, 2008-2020
[1]
“Porquê, num certo sentido, este
paradoxo, dois pesos e duas medidas? Porquê proteger a vida de um acamado ou de
um polideficiente que só deseja morrer, que suplica que o ajudem, mais do que
aquela outra, intacta, maravilhosamente nova e misteriosa de um embrião, que
mais não pediria — se pudesse pedir algo — que viver?”, André COMTE-SPONVILLE,
«Amar a vida até ao fim», in HOUZIAUX (dir.), Deve a eutanásia ser
legalizada?, Porto, Campo das Letras, pp. 24
[2] DWORKIN, Ronald, Domínio da Vida – aborto, eutanásia e
liberdades individuais, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 305.
[3]
CASADO
GONZALEZ, Maria, La eutanásia: aspectos
éticos y jurídicos, p. 38.