A
Dona Belarmina, viúva, moradora da Praça da Alegria, em Lisboa, adquiriu um
cãozinho passados cinco anos após o falecimento do seu saudoso companheiro.
Estiveram casados mais de quarenta anos e, como não tiveram filhos, a súbita
morte do marido fez abater sobre a Dona Belarmina uma onda enorme de solidão
que estava prestes a afogá-la. Recordou-se, então, do avisado conselho do seu
Paulino: «Se eu partir primeiro, compra um cão para te fazer companhia.»
Belarmina não suspeitava que o conselho do marido apenas pretendia evitar que o
seu lugar pudesse ser ocupado por outro; imaginava que um cão bastaria para
afugentar qualquer pretendente que, face à viuvez de Belarmina, se visse
acirrado para a conquista ou reconquista, nunca se sabia.
Porém, Dona Belarmina apenas
queria afastar a solidão. Além disso, também se apercebera que muitas das suas
amigas também tinham animais de companhia. Foi neste contexto que se decidiu
pelo Piruças, um irrequieto caniche,
cujas traquinices muito divertiram a sua dona nos primeiro tempos. De tal
maneira ria com ele e por causa dele que chegou a temer que se estivesse a
exceder para lá do que era recomendável, tendo em conta sua condição de recém
viúva.
O Piruças,
como qualquer cão traquinas, gostava muito de correr. Quando se apanhava no
jardim, à tarde, o Piruças
divertia-se correndo atrás dos pombos, dos gatos e, obviamente, atrás de outros
cães. Dona Belarmina tentava em vão acompanhar essas correrias. E, ofegante,
acabava a chamá-lo o mais alto que podia, tentando fazê-lo regressar até junto
da sua dona. Até porque o Piruças
distraía-se muito facilmente e não reparava nos carros que circulavam junto do
parque. Por várias vezes, Dona Belarmina ficou sem pinga de sangue ao assistir
a travagens súbitas e violentas dos automóveis, evitando atingir o Piruças. A chiadeira dos pneus no
asfalto era como que um uivo angustiante que Dona Belarmina decidiu não mais
ouvir. Foi por isso que decidiu adquirir uma coleira eficaz que evitasse essas
situações. Mas como também era incapaz de impedir o seu Piruças de fazer o que mais gostava, que era correr, teve que
optar, aconselhada pelas suas amigas, por uma coleira extensível, o último
grito em coleiras. E ,
neste campo, fez questão de pedir na loja da especialidade, a maior coleira
extensível que tivesse. Mesmo que fosse para um pequeno cão como o Piruças. Belarmina, levando consigo, ao
colo, o Piruças, explicou de forma
categórica o que pretendia, usando um tom de firmeza aristocrática com
pergaminhos que abafou os risinhos dos empregados da loja que, entretanto,
tinham parado para escutar melhor aquela estranha cliente.
«Eu quero o que houver de melhor
em matéria de coleiras extensíveis. O melhor, quer dizer, o mais seguro e o
mais comprido.»
O próprio dono do estabelecimento,
«Aires – acessórios para animais de companhia e outros», fizera questão de a
atender. Fixou as mãos abertas em cima do balcão e apoiando o corpo nos braços,
um pouco inclinado sobre a cliente, mas acabou por recuar ligeiramente face
àquele pedido. Quer dizer, face àquela ordem. Depois dirigiu-se ao computador.
«Acho que temos o que pretende.
Acaba de sair. Mas tem de vir de fora… Da China!» E continuou a teclar
rapidamente, meio oculto pelo monitor da máquina. «Su-zen La… coleiras
extensíveis infinitas…Su-zen La, Xangai.» Parecia um feiticeiro, a debitar uma
fórmula mágica, num dialeto desconhecido. Depois soltou uma gargalhada.
«Infinita? Uma coleira infinita?... Esta publicidade exagerada…» Mas Dona
Belarmina não se deixara impressionar.
«Desde que corresponda àquilo que
eu quero, até pode vir da… Rússia. Quero a melhor coleira extensível que
existir no mercado!»
Os ajudantes aproximaram-se por
detrás do patrão e foram espreitando, curiosos, os resultados da busca na
Internet por coleiras extensíveis, pelo melhor que houver em matéria de
coleiras extensíveis.
Isto foi o que a Dona Belarmina
tinha como explicação aceitável, porque era incapaz de confessar que não tinha
conseguido resistir à coleira extensível que vira ser usada por uma sua amiga,
a Dona Efigénia. A Dona Belarmina conhecia a Dona Efigénia desde os bancos da
escola. E sobre as relações entre as duas não se pode dizer que fossem as
melhores. Chegaram até a disputar o mesmo rapaz, com vantagem para a Dona
Efigénia que o conseguiu conquistar e, por fim, casar. Embora aqui se deva
dizer que a Dona Efigénia casou com ele, temendo que se o largasse a Belarmina
o pudesse agarrar. Só descansou quando Belarmina casou com Paulino. Porém,
Efigénia achava que a Belarmina, a invejosa Belarmina, nunca se esquecera dessa
disputa. Havia, por isso, uma guerra antiga, um clima de guerra surda entre as
duas. E quando a Efigénia apareceu no jardim com uma coleira extensível,
Belarmina nunca mais sossegou até descobrir onde se vendiam e acabar por
comprar uma. Claro que tinha de ser a melhor. E a maior que havia. E a mais
cara! Desconhecendo que uma encomenda destas vinda da República Popular da
China poderia ser fatal. Como foi.
A coleira extensível chegou
passadas duas semanas, duas angustiantes semanas. Nesse dia, a seguir ao
almoço, Dona Belarmina anunciou às amigas, fixando especialmente a Dona
Efigénia, que ía ao fim da tarde à loja, ao estabelecimento «Aires – acessórios
para animais de companhia e outros», buscar a coleira extensível para o Piruças. «A coleira extensível que veio
da China?», perguntou uma das senhoras. Dona Belarmina confirmou, como se outra
coleira vinda de outro sítio do mundo, fosse inapropriada para o seu cãozinho.
«Para o meu Piruças, só mesmo
produtos da China! Da China mesmo de Xangai, não de uma loja dos trezentos!» As
amigas concordaram, acenando com a cabeça. A Dona Efigénia fingiu que não tinha
ouvido. A Dona Belarmina agarrou-lhe o braço: «Já sabe?... Vou buscar a coleira
extensível do Piruças! A coleira
chinesa!» A Dona Efigénia resmungou que já tinha ouvido, que ouvia bem, muito
bem, que não era surda.
Piruças
nunca tinha sentido no seu pescoço uma coleira e manifestou com rispidez a sua
estranheza, nos primeiros dias.
Dona Belarmina fazia questão de
lhe repetir, para que todos ouvissem:
«Bem, Piruças, é uma coleira
Su-zen La, feita em Xangai! Nada de caprichos, que gastei mais de 400 euros!»
E, segurando no Piruças, olhava à sua volta, observando
o efeito das suas palavras. As amigas já as conheciam de cor e algumas já nem
podiam ouvir os gritinhos esganiçados de Dona Belarmina, chamando o Piruças e elogiando as qualidades
técnicas da coleira extensível made in
Xangai, adquirida na loja do senhor Aires.
Durante muitas tardes, o Piruças divertiu-se, apesar daquela
situação estranha à volta do seu pescocito, mais do que era costume, utilizando
a nova coleira extensível. Mercê da sua extensibilidade enorme, Piruças podia deslocar-se cada vez mais
longe, saindo do campo de visão da sua dona. Esta, contudo, estava descansada:
no folheto de apresentação das coleiras Su-zen La, falava-se duma capacidade
quase infinita, testada nos opositores do regime, nomeadamente no tempo do
bando dos quatro. Belarmina nunca tinha ouvido falar do bando dos quatro, mas não
ousou questionar as amigas sobre isso. Talvez fosse uma nova raça de cães. Uma
raça chinesa. Todas as instruções estavam escritas em inglês, traduzindo os
carateres chineses, em mandarim para ser mais preciso. Dona Belarmina
compreendia muito mal o inglês e tudo aquilo lhe parecia muito estranho. Achava
que aquilo da capacidade infinita era mera publicidade; já quanto ao facto de
as coleiras terem sido testadas nos opositores do regime maoísta, isso era-lhe
completamente incompreensível. Mas bastava-lhe olhar para a alegria do seu Piruças brincando, para se desligar dos
problemas de tradução do folheto de instruções da coleira extensível. Afinal,
era esta a causa da mais recente boa disposição do seu fiel companheiro. Não
era isso o mais importante?
Até que um dia, o mais inesperado
acabou por acontecer. Dona Belarmina, como era costume tinha jantado
frugalmente. À noite bastava-lhe um prato de sopa, que, por vezes, partilhava
com o Piruças. Nesse dia, Piruças recusou o resto da sopa da dona.
E quando Dona Belarmina se instalou na salinha, diante da telenovela, o Piruças desatou a correr, primeiro às
voltas na sala, depois percorrendo todas as divisões da sala. Dona Belarmina
estranhou aquele comportamento e chegou a pensar que o seu cãozinho tinha
comido alguma coisa que lhe tivesse feito mal. Só que o Piruças parecia cada vez mais desvairado, na sua corrida
desenfreada. Em vão a dona o chamava. Piruças
parecia desligado de tudo, apenas preocupado em correr cada vez mais depressa.
Era como se não estivesse a correr por vontade própria, mas estivesse a ser
puxado de forma violenta. Belarmina estava a ficar assustada e, apesar de estar
agarrada à coleira, segurando-a com toda a força que possuía, sentia que o seu
cão ía sair de casa disparado, impelido por uma força estranha. Uma força centrífuga,
o pior que pode haver, imaginava.
Até que, continuando a coleira a
desenrolar-se furiosamente, Dona Belarmina deixou de ver e ouvir o seu Piruças. Sabia já por experiência, que
depois de muitos metros a coleira estacava e já não se estendia mais. Contudo, sentia
que algo de estranho se estava a passar. De facto, naquela noite, a coleira não
parou de esticar. Magicamente, parecia, finalmente, uma coleira infinita. E o
cão nunca mais voltava. A noite avançava e o Piruças não regressava. A Dona Belarmina bem o procurou e chamou,
mas nada. Até que resolveu suspender as buscas e voltou, mergulhada numa
profunda tristeza, para o seu quarto, com a pega da coleira na mão. Ainda olhou
para o pratinho onde o Piruças comia
e os seus olhos não conseguiram reprimir as primeiras lágrimas dessa noite.
Deitou-se e custou-lhe adormecer, a pensar por onde é que o seu cão andaria. Se
estaria bem, se teria um sítio para dormir, se teria comido qualquer coisa. Na
sua mesinha de cabeceira poisou, ao lado do copo com a placa, a pega da coleira
extensível. Tinha a certeza que acordaria se a coleira se mexesse.
No
outro dia, mal acordou, caminhou para a cozinha, na esperança de que o seu cão
tivesse voltado. Tinha-lhe deixado a porta aberta do quarto, com essa intenção.
Chamou o Piruças, mas nada. Mas ficou
surpresa quando viu que o comedouro estava vazio. O Piruças tinha lá estado durante a noite!
Nos
dias que se seguiram, custou-lhe muito sair à rua e enfrentar as perguntas das
amigas que queriam saber do Piruças.
Não era capaz de lhes contar a verdade, pelo que lhes foi dizendo que o
pobrezinho estava doente, com uma arreliadora inflamação gástrica, doença que
conhecia em pormenor por ter estado na origem do problema de saúde, mais grave,
que lhe levou o marido. Efigénia pareceu desconfiar da explicação, mas
Belarmina já não reparav nos olhares frios e acusadores da outra. A ausência do
Piruças era mais que suficiente para
lhe ocupar a alma, afogar-lhe qualquer outro sentimento.
Durante
várias noites, o comedouro foi sendo enchido e no outro dia estava vazio. Mas era
em vão, que a Dona Belarmina tentava surpreender o cão, ou porque nunca chegava
a vê-lo, ou porque adormecia antes da sua aparição, ou porque acontecia ele
aparecer quando ela tinha que ir à casa de banho. Na noite que conseguiu,
finalmente, ficar desperta completamente, muito à força de um café duplo que
lhe deixou o coração a palpitar que esteve prestes a chamar por socorro, o Piruças não apareceu. E assim também
aconteceu na noite seguinte, até que a Dona Belarmina desistiu de ficar
acordada, emboscada numa cadeira ao lado do frigorífico, não fosse o Piruças deixar de se alimentar, devido à
sua presença escondida.
Essa
mudança de estratégia não veio alterar nada. O Piruças parecia que já não
conhecia o caminho de casa, o que não deixava de ser estranho, pois bastava
seguir a coleira. A pega desta continuava poisada junto ao comedouro, como se
fossem peças do passado, dum passado agora dolorosamente feliz.
Por fim, um dia, a Dona
Belarmina, morta de saudades do seu Piruças,
resolveu puxar com mais determinação, a coleira extensível. Estava disposta a
não parar enquanto não aparecesse o seu Piruças.
Esteve assim durante horas, como se fosse um pescador a puxar a rede. Esperava
ser compensada por abundante pescaria. Por essa razão, quando pensava que ía
aparecer o seu Piruças, um pouco mais
magro porque entretanto deixara de aparecer e comer todos os petiscos que a
Dona Belarmina lhe arranjava, saltou-lhe na cozinha um canzarrão enorme que
ladrou furioso e vendo que quase nada estava no comedouro, abriu a boca e, sem
mastigar, engoliu a Dona Belarmina que, como que num mergulho perfeito de
cabeça, desapareceu completamente no amplo buraco negro que era agora a bocarra
do seu renovado Piruças.
Epílogo
para quem pretenda discutir a duvidosa moralidade desta história
Todos lamentam, certamente, o
triste desfecho da nossa história, o fim tão horrível como inesperado da Dona
Belarmina. Só que a Dona Belarmina acabou por ser vítima de si mesma. Em
primeiro lugar, vítima da inveja e duma necessidade perfeitamente repreensível
de querer ter mais que as suas amigas. Dona Belarmina ficou roída de inveja
quando viu que uma das suas amigas do jardim possuía uma coleira extensível. É
verdade que em matéria de inveja até os deuses tinham dificuldade em lhe
resistir. Assim sendo, conseguiria não sucumbir uma pobre e solitária mortal?
De qualquer modo, as coisas ficaram piores ao pretender a coleira mais extensível
que existisse no mercado. Ora, uma coleira extensível, quase infinita, a roçar
os vastos campos do deslumbramento, acabaria por criar no seu utilizador uma
aparência de liberdade a que dificilmente se iria resistir. Quem pisasse os
sedutores caminhos da liberdade, quem deambulasse pelas avenidas da liberdade,
nunca mais seria o mesmo! Era pouco provável que, passada essa experiência,
quisesse voltar a sentir essa aparência de vida, essa ilusão anestesiante, essa
existência amputada. Finalmente, e como na altura certa sublinhámos, não era um
pormenor desprezível o facto de a coleira extensível ter sido fabricada na
República Popular da China. Ora, essas coleiras extensíveis faziam parte duma
manifestação planeada de propaganda do regime. Estas coleiras extensíveis,
quase infinitas, eram aplicadas aos opositores do regime que se encontravam
detidos. Concretamente, o regime aplicava estas coleiras extensíveis em
substituição do encarceramento formal. Os presos políticos podiam optar por
estas coleiras e fazer uma vida quase normal, pois não tinham que ficar no
interior da cela duma prisão. Voltavam para as suas casas, para o convívio com
as suas famílias, regressavam aos seus locais de trabalho. Alguns, puderam
voltar para a Universidade onde davam aulas, antes de serem detidos e julgados
ou para o jornal onde escreviam. Claro que sempre usando a coleira extensível
do regime. Mas como as coleiras eram quase infinitamente extensíveis, alguns
presos chegaram a ir ao estrangeiro e aí participar em manifestações contra o
regime chinês, dar conferências e entrevistas. Só não podiam retirar as
coleiras. Com efeito, tal era impossível devido a um sistema de fecho
eletrónico associado a um chip que emitia um sinal identificando a situação e
comunicando-o para o posto de polícia mais próximo.
Porém, as coleiras permitiam
criar essa aparência de liberdade verdadeiramente aliciante para os opositores
do regime chinês, tal como serviam as intenções de propaganda do regime perante
os governos ocidentais, simulando uma espécie de abertura democrática que era
apenas a medida da coleira.
É impressionante o que podia
fazer uma coleira extensível quase infinita. Por isso, vários estudiosos das
áreas da politologia, da sociologia e da filosofia política dedicaram-se ao
estudo dos efeitos destas coleiras nas atitudes e comportamentos dos presos
políticos. E, das muitas conclusões, as mais significativas apontaram para o
surgimento no utilizador destas coleiras extensíveis, dum poderoso desejo de liberdade
que se transformava numa vontade de libertação e de eliminação do opressor. Estas
conclusões não acompanhavam as embalagens das coleiras extensíveis quase
infinitas recebidas no estabelecimento «Aires – acessórios para animais de
companhia e outros». Nem o senhor Aires, o dono, suspeitava desta qualidade
fascinante a acompanhar um inocente acessório para cãezinhos. Quem pega numa
coleira apenas pensa em prender o animal. Nunca suspeita que a coleira também o
pode libertar. Lamentavelmente para os mais incautos. É que a verdadeira
liberdade foi a que se libertou também de si mesma.
José
Carlos S. de Almeida (2016)