Se dúvidas houvessem, a recente eleição do presidente do
Brasil comprova presença crescente das igrejas e da religião no mundo da política, dominando e determinando as várias politicas setoriais[1]. Como se
iniciou este domínio progressivo das três religiões do Livro, cristãos, judeus
e muçulmanos, no assalto ao Poder? Ora, é precisamente a isso que pretende
responder um excelente ensaio que descobri na desarrumação crescente do meu
escritório. Trata-se de "A vingança de Deus" de Gilles Kepel[2],
então investigador do CNRS e professor no Instituto de Estudos Políticos de
Paris. Quando e como se iniciou este assalto ao poder por parte das religiões
abraâmicas?
Para o
autor foi precisamente na década de 70 do século XX, contrariando o
enfraquecimento social da religião, ultrapassando a crise da modernidade e do
movimento que se iniciara com os filósofos das Luzes no século XVIII[3].
Mas que
sinais e acontecimentos se identificam, ocorridos, concretamente, a partir de
1975? Para começar, é em maio de 1977, na sequência das eleições legislativas
para o parlamento de Israel, que, pela primeira vez, os trabalhistas não
conseguem sozinhos formar governo. É também, então, que os movimentos sionistas
e ultra-ortodoxos religiosos iniciam com vigor as implantações judaicas nos
Territórios Ocupados, invocando um pacto entre Deus e o «povo eleito». É em
setembro de 1978 que é escolhido e iniciado o pontificado do cardeal polaco
Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, acompanhado por movimentos integristas no
seio das instituições católicas. Em 1979, acontece o regresso do ayatollah
Khomeini a Teerão, ao que se segue a proclamação da República Islâmica,
iniciando-se em vários países, desde a Malásia ao Senegal, um movimento de
afirmação social e política do Islão, uma vaga de fundo no sentido de
reislamizar a vida quotidiana. Face a tudo isto, não devemos esquecer a eleição
em 1976 de Jimmy Carter, um batista convicto, como Presidente dos Estados
Unidos, seguido, em 1980, da eleição, para o mesmo cargo, de Ronald Reagan, que
pretenderá refazer uma América em crise[4],
alicerçada no respeito pelos valores cristãos.
A
afirmação dos movimentos religiosos não são, para Kepel, o resultado de um
desvario da razão ou da manipulação de forças obscuras, "mas sim o
testemunho insubstituível de um mal-estar social profundo que as nossas
categorias de pensamento tradicionais já não permitem decifrar"[5].
Este
reconhecimento da nossa incapacidade para compreender a capacidade destes
movimentos religiosos em identificar as novas disfunções sociais talvez
explique como assistimos, mais ou menos passivamente, à sua ascensão e poder
crescente na sociedade. O aviso de Kepel tem mais de vinte e cinco anos. Parece
que só agora começamos a compreender os novos gritos e as novas queixas dos nossos
concidadãos eternamente esquecidos, quando a direita e a extrema-direita
xenófobas e nacionalistas conseguiram corporizar politicamente as deceções dos
deserdados do progresso e da globalização e se mantinham à margem das decisões
políticas e da politica mais convencional. Como sempre, a realidade anda mais à
frente que o pensamento.
[1] O papel
crescente e assustador das igrejas cristãs evangélicas no Brasil faz com que
constituam no Congresso uma das bancadas mais dominantes no seio daquilo que se
denominam os três B's: da bala, do boi e da Bíblia.
[2] Gilles
Kepel, A Vingança de Deus - cristãos,
judeus e muçulmanos à reconquista de mundo, Lisboa, Publicações Dom
Quixote, 1992, 298 pp. A edição original é do ano anterior.
[4] E
humilhada pelos recentes acontecimentos da denominada «crise dos reféns» que
incidiu sobre o pessoal da sua embaixada em Teerão.
[5] Gilles Kepel, op. cit., p. 30.