sábado, 5 de janeiro de 2019

A vingança de Deus


Se dúvidas houvessem, a recente eleição do presidente do Brasil comprova  presença crescente das igrejas e da religião no mundo da política, dominando e determinando as várias politicas setoriais[1]. Como se iniciou este domínio progressivo das três religiões do Livro, cristãos, judeus e muçulmanos, no assalto ao Poder? Ora, é precisamente a isso que pretende responder um excelente ensaio que descobri na desarrumação crescente do meu escritório. Trata-se de "A vingança de Deus" de Gilles Kepel[2], então investigador do CNRS e professor no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Quando e como se iniciou este assalto ao poder por parte das religiões abraâmicas?
Para o autor foi precisamente na década de 70 do século XX, contrariando o enfraquecimento social da religião, ultrapassando a crise da modernidade e do movimento que se iniciara com os filósofos das Luzes no século XVIII[3]
Mas que sinais e acontecimentos se identificam, ocorridos, concretamente, a partir de 1975? Para começar, é em maio de 1977, na sequência das eleições legislativas para o parlamento de Israel, que, pela primeira vez, os trabalhistas não conseguem sozinhos formar governo. É também, então, que os movimentos sionistas e ultra-ortodoxos religiosos iniciam com vigor as implantações judaicas nos Territórios Ocupados, invocando um pacto entre Deus e o «povo eleito». É em setembro de 1978 que é escolhido e iniciado o pontificado do cardeal polaco Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, acompanhado por movimentos integristas no seio das instituições católicas. Em 1979, acontece o regresso do ayatollah Khomeini a Teerão, ao que se segue a proclamação da República Islâmica, iniciando-se em vários países, desde a Malásia ao Senegal, um movimento de afirmação social e política do Islão, uma vaga de fundo no sentido de reislamizar a vida quotidiana. Face a tudo isto, não devemos esquecer a eleição em 1976 de Jimmy Carter, um batista convicto, como Presidente dos Estados Unidos, seguido, em 1980, da eleição, para o mesmo cargo, de Ronald Reagan, que pretenderá refazer uma América em crise[4], alicerçada no respeito pelos valores cristãos. 
A afirmação dos movimentos religiosos não são, para Kepel, o resultado de um desvario da razão ou da manipulação de forças obscuras, "mas sim o testemunho insubstituível de um mal-estar social profundo que as nossas categorias de pensamento tradicionais já não permitem decifrar"[5]
Este reconhecimento da nossa incapacidade para compreender a capacidade destes movimentos religiosos em identificar as novas disfunções sociais talvez explique como assistimos, mais ou menos passivamente, à sua ascensão e poder crescente na sociedade. O aviso de Kepel tem mais de vinte e cinco anos. Parece que só agora começamos a compreender os novos gritos e as novas queixas dos nossos concidadãos eternamente esquecidos, quando a direita e a extrema-direita xenófobas e nacionalistas conseguiram corporizar politicamente as deceções dos deserdados do progresso e da globalização e se mantinham à margem das decisões políticas e da politica mais convencional. Como sempre, a realidade anda mais à frente que o pensamento.


[1] O papel crescente e assustador das igrejas cristãs evangélicas no Brasil faz com que constituam no Congresso uma das bancadas mais dominantes no seio daquilo que se denominam os três B's: da bala, do boi e da Bíblia.
[2] Gilles Kepel, A Vingança de Deus - cristãos, judeus e muçulmanos à reconquista de mundo, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992, 298 pp. A edição original é do ano anterior.
[3] No sentido em que o século XXI se inicia em 1979, com uma série de rupturas e preparando-se o início duma era conservadora que se começa agora a concretizar, veja-se o curto apontamento do «El Mundo», de 2 de janeiro de 2019, aqui.
[4] E humilhada pelos recentes acontecimentos da denominada «crise dos reféns» que incidiu sobre o pessoal da sua embaixada em Teerão.
[5] Gilles Kepel, op. cit., p. 30.