Não é um livro agradável, mas é um livro necessário. O livro Auschwitz - um dia de cada
vez (Lisboa,
A Esfera dos Livros, 332 pp.) de Esther Mucznik, dirigente da Comunidade
Israelita de Lisboa e estudiosa de questões judaicas, é de leitura obrigatória,
no verdadeiro sentido da palavra[1].
Reconheço que, de vez em quando, regresso à leitura de obras sobre o Holocausto
nazi, não porque sinta necessário reavivar-me a memória, mas porque tento,
recorrentemente, perceber melhor o problema do mal, dos limites do mal, do que
pode o homem fazer ao seu semelhante, praticando as formas mais cruéis de
eliminar aquele nos olha nos olhos e onde no seu olhar nos devolve a imagem de
nós próprios. Como é possível, humanamente possível, responder como o fez
Wilfred von Oven, ajudante-de-campo de Goebbels, que ao convite para resumir
numa só palavra a sua experiência do Terceiro Reich, respondeu que essa palavra
seria... Paraíso![2] Ora,
como se pode con-viver, viver ao lado das experiências mais horríveis exercidas
sobre seres humanos indefesos? E, mais do que viver, viver no melhor dos mundos
possíveis? É que o regime nazi levou a cabo um processo de massas no sentido da
mais cruel desumanização que não se podia ignorar, apesar dos esforços da
propaganda de apresentar campos modelo, como o gueto de Theresienstadt (pp.
153-172).
O choque logo à chegada do campo era, para os prisioneiros, muitos que
até desconheciam o destino para o qual estavam a ser encaminhados, absoluto:
"o aspeto sinistro das cercas de arame farpado, a visão diabólica das
chamas a sair dos crematórios, o cheiro nauseabundo de carne e cabelos
queimados, tudo isto acompanhado pela brutalidade com que eram recebidos, o
afastamento violento e imediato dos familiares, o desconhecimento do que os
aguardava, transformavam a chegada dos prisioneiros num pesadelo sem nome"
(p. 87).
Os campos acolheram prisioneiros oriundos de muitos pontos da Europa, nem
todos tratados da mesma maneira, criando-se uma espécie de hierarquia racial.
Os polacos, os checos e os eslavos antecediam imediatamente os mais
maltratados: os ciganos e os judeus (p. 93).
Ora, à medida que o conflito prosseguia pela Europa, era inegável o
aproveitamento da mão-de-obra dos prisioneiros, contribuindo para a economia
alemã implicada no esforço de guerra. Aliás,
foram numerosas as empresas alemãs a aproveitarem-se dessa mão-de-obra,
empresas respeitáveis com que, hoje, nos cruzamos diariamente. Esse
aproveitamento de natureza económica pode introduzir um laivo de racionalidade
no holocausto. Como as experiências médicas. Mas não conseguem superar o
sentimento de perplexidade perante a sua desumanidade monstruosa.
Por outro lado, a terrível experiência de Auschwitz prolongou-se para
além do campo. Continua naqueles que sobreviveram. Muitos deles continuarão a
viver com uma ferida interior que os corrói, com uma memória angustiante ou um sentimento de culpa por ter
sobrevivido. Como confessa uma das muitas sobreviventes e cujo testemunho vem
reproduzido no livro: «Nunca se sai verdadeiramente do crematório» (p. 261).
Talvez esteja aqui uma das razões para não esquecermos Auschwitz e, pelo
contrário, nos entregarmos à leitura de obras que vão retratando e dando a conhecer
o que foi o terror nazi. É que, tal como a prisioneira, os crematórios não
foram deixados para trás, como um artefacto duma arqueologia mais recente. A
autora repete várias vezes: não basta a memória, é necessário e essencial o
conhecimento da realidade nazi.
Até porque, sublinha Esther Mucznik, por vezes esquecemos a principal
lição de Auschwitz: "A de como podem ser destrutivas as guerras nas nossas
sociedades altamente evoluídas do ponto de vista científico, tecnológico e
industrial". E os maiores massacres não aconteceram nos campos de batalha,
"mas nos bastidores das administrações públicas e privadas" (p. 296).
O nosso tempo é ainda um tempo onde o mal se vem manifestando sob formas mais dissimuladas:
o conformismo, a indiferença, a cumplicidade perante a violência, o
desenraizamento dos homens que regressa, os muros.
Como recorda Hannah Arendt, "as soluções totalitárias podem muito
bem sobreviver à queda dos regimes totalitários, sob a forma de fortes
tentações, que aparecerão onde pareça impossível aliviar a miséria política,
social ou económica"[3].
Neste sentido, o significado político do totalitarismo que construiu
Auschwitz, não morreu com Auschwitz. As fortes tentações totalitárias ainda
inspiram a política dos nossos dias. Todos sabemos isso. E já achámos que seria
impossível apoderarem-se do discurso político oficial. Só que a realidade, no
seu dramatismo, está sempre à frente do que possamos pensar àcerca dela.
[1] Esther Muznik é também autora do livro Portugueses no Holocausto, editado entre
nós, também, pela Esfera dos Livros.
[2] Cf. Lawrence Rees, Auschwitz
- os nazis e a «solução final», Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005, 416
pp.
[3] Hannah Arendt cit. in Cristina Sanchéz, Arendt -a política em tempos obscuros, Lisboa,
Cofina Media, 2015, p. 63.