quinta-feira, 13 de julho de 2017

Os cães não se medem aos palmos


Os homens não se medem aos palmos. Medem-se do nariz para cima. O tamanho de alguém não nos diz nada sobre a sua dimensão moral e intelectual. A estatura dum indivíduo não se mede com uma fita métrica. Ora, o que aqui se diz sobre os seres humanos é também válido para os cães. E quem conhecer o Gipsy só poderá confirmar esta tese.
O Gipsy (nome atual) veio viver connosco há coisa de uns quatro meses. É um minúsculo rafeiro, aparentado de pinscher, já com um ano, que estava abandonado, mas aparecia todos os dias na escola da minha mulher, no Bairro da Encarnação, lá para os lados dos Olivais. Acompanhando as crianças que vinham para a escola, no início nem deixava que qualquer adulto dele se aproximasse. Sempre seguindo os miúdos, acabava por entrar na sala de aula e aí ficava, dormitando, junto da secretária da professora. Apenas saía com os alunos quando tocava a campainha para o recreio e regressava com eles, voltando a enrolar-se no mesmo canto. Não incomodava ninguém, passava despercebido.
O Gipsy, que na altura não era ainda assim chamado, não tinha dono. Seguia as crianças para todo o lado, apesar de o tratarem mal, com as sua brincadeiras mais violentas: davam-lhe pontapés, atiravam-lhe pedras, jogavam futebol com ele como se ele fosse uma bola. Mas nem por isso, o cãozinho deixava de os seguir saindo com eles ao fim do dia. Ía depois atrás deles, percorrendo todas as ruas do bairro. As famílias davam-lhe restos do jantar, que ele partilhava com outros cãezinhos do bairro. Quando a ementa não era suficiente, o Gipsy tratava de ir à caça de pássaros e ratos, confirmando os seus dotes de caçador e que nós, mais tarde, pudemos observar. O Gipsy enfiava-se em todos os recantos, desaparecia no fundo de qualquer balseiro, trepava pelo tronco das árvores. À noite, dormia com os outros cães, numa garagem abandonada, não conseguindo evitar os rigores do último inverno que tinha sido invulgarmente frio e chuvoso. Talvez por isso Gipsy não desperdiçasse o inesperado conforto dquela sala de aulas, mesmo que, ao mesmo tempo, fosse alvo das sevícias dos miúdos mais cruéis.
Em casa, já tínhamos conversado sobre o cãozinho abandonado e que era tão maltratado pelos garotos. Só que nós tínhamos já dois cães, Gorki e Gaudí, cujo início de vida também não decorrera da melhor maneira. Ao fim de quase dois anos eram agora dois enormes cães, muito dóceis e com um excelente relacionamento. A situação do Gipsy não nos era indiferente, mas tínhamos as nossas limitações e os nossos limites. Felizmente, o coração conhece outros limites e o amor não deve conhecer barreiras.
A minha mulher já tinha repreendido, por várias vezes, os miúdos que tratavam mal o Gipsy. Muitos deles eram seus alunos, sendo que alguns deles diziam que o cão não se importava, que era tudo brincadeira. Mas também os tinha avisado que, se não parassem com os maus tratos, um dia iria levá-lo e deixariam de o ver.
Algumas das boas decisões da nossa vida são tomadas por impulso, sem pensar nas consequências. Dizia o Torga que se soubesse que ía levar uma bofetada do pai da rapariga, nunca lhe tinha roubado um beijo. À rapariga, claro. O excesso de pensamento também pode ser paralisante. Ora, os garotos continuaram a ser violentos para com o pequenino cão e a Filipa acabou por trazê-lo para nossa casa!
A intenção era tratar dele, dar-lhe um banho, levá-lo ao veterinário e vaciná-lo. Depois se veria o que a seguir iria acontecer, não estando excluída a hipótese que seria colocá-lo num abrigo para adoção. Obviamente, iríamos tentar que alguém do nosso círculo de conhecimentos o acolhesse.
Só que o putativo hóspede provisório imediatamente conquistou o nosso coração. A sua disponibilidade e entrega e a sensação de que estava imensamente agradecido por, pela primeira vez, poder dormir uma noite confortável e em segurança, foram determinantes. Por outro lado, imediatamente interagiu com o Gorki e o Gaudí e era evidente que todos se íam dar bem!...
Nunca tínhamos pensado em ter um cão tão pequeno. Aliás, devo confessar que sempre achara esses cãezinhos pequenitos, uns seres irritantes, que existiam no colo das senhoras menopausicas, como mais um adereço ou apareciam nas casas dessas senhoras ao lado dos napperons junto da televisão, como mais um elemento decorativo a condizer com o carpélio das alcatifas nas traseiras dos carros, rivalizando com os canitos de plástico que aí estão a acenar constantemente a cabeça. Só que este canito parecia ser completamente diferente da imagem que, preconceituosamente, se formara no meu espírito. Era, ou pelo menos parecia ser, especialmente inteligente, aprendendo depressa, que constantemente queria agradar aos adultos.
Ora, o primeiro passo dado no sentido do Gipsy ficar definitivamente connosco foi a sua mudança de nome. Deixou de ser o Dark ou Darkie como era chamado pelos garotos para passar a ser o Gipsy, em referência à etnia dominante na escola que ele "frequentava".
Um nome novo funcionava aqui como a consagração do início duma nova vida e duma nova história. Ao ser "batizado", estávamos a admitir o seu nascimento (ou renascimento). Tudo sob a supervisão duns improváveis padrinhos que nunca teriam admitido receber na sua casa um cãozinho tão ínfimo e que sempre tinham parodiado apelidando-os de cães a pilhas...

Só que, como afirmei no início, o tamanho é um acidente meramente biológico. O que verdadeiramente conta é o que cada um faz com o tamanho que lhe calhou, como se adapta a esse acaso e, com ele, constrói uma identidade  e uma história próprias. E este Gipsy, ao fim destes poucos meses, já provou, que os cães não se medem aos palmos, que cada um é como é, e ele também acaba por ser um indivíduo com personalidade, muito estilo e afetuoso. Por isso, olhando para aquele cãozinho de palmo, que me olha intrigado por vezes, desafiante outras, só posso exclamar: ah, grande Gipsy!...

2 comentários:

  1. Os textos também não se medem aos palmos. Também eu fiquei a gostar do Gipsy

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  2. Os textos também não se medem aos palmos. Até eu fiquei a gostar do Gipsy

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